Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002
Pra não dizer que não falei de prosa, aí
está uma amostra do Drummond cronista, sempre de expressão elegante e
bem-humorada. Talvez você tenha dificuldade
de alcançar o sentido de algumas expressões mais antigas. Boa parte delas
foi traduzida no livro Seleta em Prosa e Verso, de Drummond (Ed.
Record), organizado por Gilberto Mendonça Teles.
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ANTIGAMENTE, as moças
chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e muito
prendadas. Não faziam anos: completavam primaveras, em geral
dezoito. Os janotas, mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes pé-de-alferes,
arrastando a asa, mas ficavam longos meses debaixo do balaio. E se levavam
tábua, o remédio era tirar o cavalo da chuva e ir pregar em outra
freguesia. As pessoas, quando corriam, antigamente, era para tirar o pai
da forca e não caíam de cavalo magro. Algumas jogavam verde para colher
maduro, e sabiam com quantos paus se faz uma canoa. O que não impedia que,
nesse entrementes, esse ou aquele embarcasse em canoa furada. Encontravam
alguém que lhes passasse a manta e azulava, dando às de vila-diogo. Os
mais idosos, depois da janta, faziam o quilo, saindo para tomar fresca; e
também tomavam cautela de não apanhar sereno. Os mais jovens, esses iam ao
animatógrafo, e mais tarde ao cinematógrafo, chupando balas de altéia. Ou
sonhavam em andar de aeroplano; os quais, de pouco siso, se metiam em
camisa de onze varas, e até em calças pardas; não admira que dessem com os
burros n’água.
HAVIA OS QUE tomaram chá em criança, e, ao visitarem família da maior
consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus
respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: “Farei presente.” Outros, ao
cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu, exclamando: “Louvado seja
Nosso Senhor Jesus Cristo”, ao que o Reverendíssimo correspondia: “Para
sempre seja louvado.” E os eruditos, se alguém espirrava
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sinal de defluxo
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eram impelidos a exortar: “Dominus tecum”. Embora sem saber da
missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e
com isso metiam a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a
tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a desfeita que
lhe faziam, quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artioso.
Verdade seja que às vezes os meninos eram mesmo encapetados; chegavam a
pitar escondido, atrás da igreja. As meninas, não: verdadeiros cromos,
umas tetéias.
ANTIGAMENTE, certos tipos faziam negócios e ficavam a ver navios; outros
eram pegados com a boca na botija, contavam tudo tintim por tintim e iam
comer o pão que o diabo amassou, lá onde Judas perdeu as botas. Uns raros
amarravam cachorro com lingüiça. E alguns ouviam cantar o galo, mas não
sabiam onde. As famílias faziam sortimento na venda, tinham conta no
carniceiro e arrematavam qualquer quitanda que passasse à porta, desde que
o moleque do tabuleiro, quase sempre um cabrito, não tivesse catinga.
Acolhiam com satisfação a visita do cometa, que, andando por ceca e meca,
trazia novidades de baixo, ou seja, da Corte do Rio de Janeiro. Ele vinha
dar dois dedos de prosa e deixar de presente ao dono da casa um canivete
roscofe. As donzelas punham carmim e chegavam à sacada para vê-lo apear do
macho faceiro. Infelizmente, alguns eram mais do que velhacos: eram
grandessíssimos tratantes.
ACONTECIA o indivíduo apanhar constipação; ficando perrengue, mandava o
próprio chamar o doutor e, depois, ir à botica para aviar a receita, de
cápsulas ou pílulas fedorentas. Doença nefasta era a phtysica, feia era o
gálico. Antigamente, os sobrados tinham assombrações, os meninos
lombrigas, asthma os gatos, os homens portavam ceroulas, botinas e
capa-de-goma, a casimira tinha de ser superior e mesmo X.P.T.O. London,
não havia fotógrafos, mas retratistas, e os cristãos não morriam:
descansavam.
MAS TUDO ISSO era antigamente, isto é, outrora.
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