Número 8

Segunda-feira, 23 de setembro de 2002 

"Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu." (C.D.A.)

  Família

Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002


 

 

 

 



Drummond: menino antigo




Três poemas com recordações de infância do poeta. Aqui, o destaque é o patriarca dos Andrade, que causa "terroramor".

O título "Família" é meu, apenas para "amarrar" os três textos, que não estão juntos no livro de origem.

São textos originalmente publicados como crônicas no Jornal do Brasil. Neste caso, o que está em jogo não é exatamente a arte poética, mas o depoimento sobre uma época: o início do século 20 numa cidadezinha mineira chamada Itabira do Mato Dentro.

 


Centenário do poeta:
31 de outubro de 2002

DISTINÇÃO

O Pai se escreve sempre com P grande
em letras de respeito e de tremor
se é Pai da gente. E Mãe, com M grande.

O Pai é imenso. A Mãe, pouco menor.
Com ela, sim, me entendo bem melhor:
Mãe é muito mais fácil de enganar.

(Razão, eu sei, de mais aberto amor.)


O BEIJO

Mandamento: beijar a mão do Pai
às 7 da manhã, antes do café
e pedir a bênção
e tornar a pedir
na hora de dormir.

Mandamento: beijar
a mão divino-humana
que empunha a rédea universal
e determina o futuro.
Se não beijar, o dia
não há de ser o dia prometido,
a festa multimaginada,
mas a queda
tibum no precipício
de jacarés e crimes
que espreita, goela escancarada.

Olha o caso de Nô.
Cresce demais, vira estudante
de altas letras, no Rio de outras normas.
Volta, não beija o Pai
na mão. A mão procura
a boca, dá-lhe um tapa,
maneira dura de beijar
o filho que não beija a mão sequiosa
de carinho, gravado
nas tábuas da lei mineira de família.

Que é isso? Nô sangra na alma,
a boca dói que dói
é lá dentro, na alma. O dia, a noite,
a fuga para onde? Foge Nô
no breu do não-saber, sem rumo, foge
de si mesmo, consigo,
e não tem saída
a não ser voltar,
voltar sem chamado,
para junto da mão
que espera seu beijo
na mais pura exigência
de terroramor.

Olha o caso de Nô.
7 da manhã.
Antes do café.


REVOLTA

Não quero este pão
Quinquim atira
o pão no chão.

A mesa vira vidro, transparente
de emoção.
Quem ousa fazer isso em pleno almoço?
Pede castigo
o pão jogado ao chão.

O Castigador decreta:
Agora de joelhos você vai
apanhar este pão.
Vai trazer um barbante e amarrar
o pão no seu pescoço
e vai ficar o dia todo
de pão no peito, expiação.

Quinquim perdeu a força da revolta.
Apanha o pão, amarra o pão
no pescoço humilhado
e ostenta o dia todo
a condecoração.

Drummond: 100 anos
Carlos Machado, 2002

Carlos Drummond de Andrade
In Menino Antigo (Boitempo II)
José Olympio, 1973
© Graña Drummond