Número 17

Segunda-feira, 14 de outubro de 2002 

"A união faz a força que, aplicada, faz a desunião." (C.D.A.)

  O novo homem

Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002

 

Nada escapou ao olhar detalhista de Drummond em suas crônicas. Custo de vida? Tem. Escola de samba, carnaval e futebol? Tem. Viagem à lua, briga de vizinho, guerra, paz, brotinho de miniblusa e velhinho de bengala? Tudo isso também tem. Praticamente, não há tema do dia-a-dia que não tenha freqüentado as crônicas do poeta.

Aqui, ele trabalha com o tema do bebê de proveta, o ser humano feito em laboratório. A crônica em versos "O Novo Homem" foi publicada no Jornal do Brasil em 17/12/1967
portanto, 35 anos atrás. A genética nem estava tão avançada assim e Drummond já discutia e ironizava a idéia do ser humano "fabricado", com bebês à la carte, escolhidos num catálogo.
                       

 

 

 

Centenário do poeta:
31 de outubro de 2002

O homem será feito
em laboratório.
Será tão perfeito
como no antigório.
Rirá como gente,
beberá cerveja
deliciadamente.
Caçará narceja
e bicho do mato.
Jogará no bicho,
tirará retrato
com o maior capricho.
Usará bermuda
e gola roulée.
Queimará arruda
indo ao canjerê,
e do não-objeto
fará escultura.
Será neoconcreto
se houver censura.
Ganhará dinheiro
e muitos diplomas,
fino cavalheiro
em noventa idiomas.
Chegará a Marte
em seu cavalinho
de ir a toda parte
mesmo sem caminho.
O homem será feito
em laboratório,
muito mais perfeito
do que no antigório.
Dispensa-se amor,
ternura ou desejo.
Seja como flor
(até num bocejo)
salta da retorta
um senhor garoto.
Vai abrindo a porta
com riso maroto:
"Nove meses, eu?
Nem nove minutos."
Quem já conheceu
melhores produtos?
A dor não preside
sua gestação.
Seu nascer elide
o sonho e a aflição.
Nascerá bonito?
Corpo bem talhado?
Claro: não é mito,
é planificado.
Nele, tudo exato,
medido, bem-posto:
o justo formato,
o standard do rosto.
Duzentos modelos,
todos atraentes.
(Escolher, ao vê-los,
nossos descendentes.)
Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma ficha impressa
a todos atende.
Perdão: acabou-se
a época dos pais.
Quem comia doce
já não come mais.
Não chame de filho
este ser diverso
que pisa o ladrilho
de outro universo.
Sua independência
é total: sem marca
de família, vence
a lei do patriarca.
Liberto da herança
de sangue ou de afeto,
desconhece a aliança
de avô com seu neto.
Pai: macromolécula;
mãe: tubo de ensaio
e, per omnia secula,
livre, papagaio,
sem memória e sexo,
feliz, por que não?
pois rompeu o nexo
da velha Criação,
eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
acabou com o Homem.
Bem feito.

Drummond: 100 anos
Carlos Machado, 2002

Carlos Drummond de Andrade
In Caminhos de João Brandão
(publicado originalmente no JB, 17/12/1967)
José Olympio, 1970
© Graña Drummond