Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002
No bojo das discussões em
torno das atuais eleições presidenciais, a atriz Regina Duarte trouxe à tona
o tema do medo. Ela diz que tem medo de uma eventual vitória nas urnas do
candidato Luís Inácio Lula da Silva.
Esse tema traz à memória os poemas de Drummond a propósito do medo. Dois
deles se destacam: "Congresso Internacional do Medo", em Sentimento do
Mundo (1940), e "O Medo", em A Rosa do Povo (1945). Ambos foram
escritos em momento de conflito e de opressão
― a Segunda Guerra Mundial e, no Brasil, a
ditadura do Estado Novo.
A diferença da abordagem de Drummond em relação à de Regina Duarte é que ele
vê o medo como uma imposição dos opressores. E vê, também, que, ao contrário
do medo, o que interessa aos oprimidos, e às pessoas de boa vontade em
geral, é a esperança. É o movimento de ir "para a frente, recuando de olhos
acesos".
Transcrevo ao lado o poema "O Medo", de Drummond, e abaixo sua
caracterização histórica, escrita por Marina Camargo Costa e Iná Camargo
Costa. Não conheço as autoras. Recebi seu texto de terceiros. Como pedem
divulgação, sinto-me autorizado a reproduzi-lo. Aí vai:
. . .
"NOS ANOS EM QUE a luta contra o Estado Novo começou a sair da
clandestinidade, jornais como O Estado de S. Paulo abriram suas
páginas aos jovens que participavam
corajosamente
dessa luta. Assim, em 1943, uma série de intervenções desses
bravos militantes foi publicada naquele jornal e mais tarde no
volume Plataforma da Nova Geração (1945).
Como não podia deixar de ser, Antonio Candido deu a sua preciosa
contribuição ao empreendimento e em seu texto, disponível no volume
Textos de Intervenção organizado por Vinícius Dantas, desenvolveu dois
temas que interessam agora.
O primeiro diz respeito aos poemas de combate de Carlos Drummond de Andrade,
hoje reunidos nos volumes Sentimento do Mundo e A Rosa do Povo;
o segundo diz respeito ao papel torpe da Reação intelectual e artística, que
naquela altura procurava disseminar O MEDO por toda a parte.
A conclusão do texto de Antonio Candido é extremamente lúcida (como sempre):
Porque há para nós um problema sério, tão sério que nos leva às vezes a
procurar meio afoitamente uma 'solução'; a buscar uma regra de conduta,
custe o que custar. Este problema é o do medo. Do medo que nos toma a todos
de estarmos sendo inferiores à nossa tarefa; ou de não conseguirmos fazer
algo definitivamente útil para o nosso tempo (...) Eu não posso bem
dizer que tenha [um critério para afastar o medo], mas confesso que esse
combate a todas as formas de Reação, que eu apenas sugeri, nos ajudaria
muito a ficar livres dele.
A resposta de Carlos Drummond de Andrade veio no poema 'O Medo'."
Marina Camargo Costa e
Iná Camargo Costa
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A Antonio Candido
"Porque há para todos nós um
problema sério...
Este problema é o do
medo."
(Antonio Candido, Plataforma de Uma Geração)
Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.
Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.
Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?
Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas
do homem só.
Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.
Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.
E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.
Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.
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