Quarta-feira, 6 de novembro de 2002 

"Oh abre os vidros de loção / e abafa / o insuportável mau cheiro da memória." (C.D.A.)

Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002

À parte a qualidade literária, os livros de memória poética de Drummond (Boitempo I, II e III) constituem um excelente material de estudo para os interessados em compreender o Brasil do século 19 e início do século 20; e também para os interessados em entender o Brasil da escravidão — que, infelizmente, do ponto de vista da prática social, ainda não foi abolida.

Este poema, um pequeno flagrante da vida dentro de uma casa senhorial, traz preciosa informação sobre a família patriarcal brasileira.

A porta cerrada
não abras.
Pode ser que encontres
o que não buscavas
nem esperavas.

Na escuridão
pode ser que esbarres
no casal em pé
tentando se amar
apressadamente.

Pode ser que a vela
que trazes na mão
te revele, trêmula,
tua escrava nova,
teu dono-marido.

Descuidosa, a porta
apenas cerrada
pode te contar
conto que não queres
saber.

Carlos Drummond de Andrade
In Esquecer para Lembrar (Boitempo III)
José Olympio, 1979
© Graña Drummond