Número 37

Quarta-feira, 27 de novembro de 2002

"Eu distribuo um segredo/ como quem ama ou sorri." (C.D.A.)

  Contos plausíveis

Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002


Contos Plausíveis:
capa da edição de 1991

 

Para quem lê com má vontade, são histórias completamente sem pé nem cabeça. Mas se você reunir alguma disposição para a poesia, vai notar que esses contos de Drummond são, como diz o título, perfeitamente plausíveis ― no sentido, esclarece o poeta, de críveis, prováveis, verossímeis.

Publicados inicialmente em 1981, numa edição especial de pequena tiragem, os Contos Plausíveis apareceram pela primeira vez para o grande público em 1985. Sua origem é a mesma das crônicas do poeta: a coluna das terças, quintas e sábados no Jornal do Brasil, que a redistribuía para outros jornais do país.

Tanto na edição de 1981 como na de 1985, os 150 contos plausíveis trazem ainda uma brincadeira. Cada um deles ― brevíssimo, ocupa menos de uma página ― vem acompanhado de uma ilustração, assinada pelas artistas Irene Peixoto e Márcia Cabral. Só que a imagem não se refere ao conto da mesma página. Então o leitor fica convidado a descobrir, no livro, qual imagem corresponde a qual texto. "Parece que na vida também é assim: as pessoas e coisas nem sempre andam de par constante", diz Drummond no prefácio.

Bem, por mais fantásticos que os textos pareçam, há sempre um pé na realidade. Confira, por exemplo, a história do rei e da opinião pública (ao lado) e lembre-se de que, publicados em 1981, esses textos foram escritos durante a ditadura militar.

A OPINIÃO EM PALÁCIO

O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o poder com a Opinião Pública.

Chamem a Opinião Pública ordenou aos serviçais.

Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a Opinião Pública deixara de freqüentar lugares públicos. Recolhera-se ao Beco sem Saída, onde, furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez em quando.

Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde Sua Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe disse:

Preciso de ti.

A Opinião, muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-lo. O Rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopos, correção monetária, essas coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: não tinha opinião.

Vou te obrigar a ter opinião disse o Rei, zangado. Meus especialistas te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar sem o teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável.

E virando-se para os serviçais:
Levem esta senhora para o Curso Intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela só volte aqui depois de decorar bem as apostilas.
 

A VOLTA DO GUERREIRO

Os homens que voltaram da guerra traziam feridas e pesadelos. Encontraram suas amadas indiferentes. Passara tanto tempo que algumas nem se lembravam deles, e muitas tinham estabelecido novos amores.

Uma, entretanto, permaneceu lembrada e fiel, e atirou-se com fúria passional aos braços do ex-guerreiro. Ele a repeliu, dizendo:
Não quero mais ver a guerra diante de mim.
Eu não sou a guerra, sou o amor, querido respondeu-lhe a mulher, assustada.
Você é a imagem da guerra, você me agarrou como o inimigo na luta corpo a corpo, eu não quero saber de você.
Então farei carícias lentas e suaves.
O inimigo também passa a mão de leve pelo corpo do soldado caído, para tirar o que houver no uniforme.
Ficarei quieta, não farei nada.
Não fazer nada é a atitude mais suspeita e mais perigosa do inimigo, que nos observa para nos atacar à traição.

Separaram-se para sempre.


DESEMPREGO

Não está me reconhecendo? Sou a terceira mulher do Sabonete Araxá. Aquelas do anúncio.
Eu sei. As três mulheres do poema de Manuel Bandeira.
Não, do anúncio do sabonete. O poema veio depois, nós já existíamos antes.
E que foi feito das duas outras?
A primeira passou a trabalhar para a Sentinela Juropapo. A segunda está no galarim, só trabalha para a Secom. Eu estou desempregada, não dá para me arranjar uma boa mordomia no INPS? Sei que é difícil me aposentar, porque já tenho idade de sobra, mas...


EXCESSO DE COMPANHIA

Os anjos cercavam Marilda, um de cada lado, porque Marilda ao nascer ganhou dois anjos da guarda.

Em vez de ajudar, atrapalhou. Um anjo queria levar Marilda a festas, o outro à natureza. Brigavam entre si, e a moça não sabia a qual deles obedecer. Queria agradar aos dois, e acabava se indispondo com ambos.

Tocou-os de casa. Ficou sozinha, sem apoio espiritual mas também sem confusão. Os dois vieram procurá-la, arrependidos, pedindo desculpas.

Só aceito um de cada vez. Passa uns tempos comigo, depois mando embora, e o outro fica no lugar. Dois anjos ao mesmo tempo é demais.

Agora Marilda é o anjo da guarda dos seus anjos, um de cada vez.
    

Drummond: 100 anos
Carlos Machado, 2002

Carlos Drummond de Andrade
In Contos Plausíveis
José Olympio, 1985
© Graña Drummond