Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002
De Drummond ficou muito. Mas
o poeta, sempre gauche, minimizava a importância de seus versos.
"Minha motivação foi esta: tentar resolver, através de
versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia,
incompreensão e inadaptação ao mundo”, disse Drummond ao jornalista Geneton
Moraes Neto, em sua última entrevista, publicada cinco dias após sua morte,
no caderno Idéias, do Jornal do Brasil, em 22 de agosto de
1987.
Essa entrevista, completa, foi reproduzida no livro O Dossiê Drummond,
de Geneton Moraes Neto (Editora Globo, 1994).
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BIOGRAFIA
A
fortuna
crítica de Drummond é
imensa. Dá para encher uma biblioteca.
Com
certeza,
não há
outro
poeta
brasileiro
com
maior
volume de
estudos dedicados ao
seu
trabalho.
Todo
departamento de
letras de
qualquer
faculdade
que se preze tem
pelo
menos
um drummondólogo
que
já publicou —
em
tese,
em
artigo
ou
em
livro —
algum
tipo de apreciação
crítica
sobre os
escritos de Drummond:
poesia,
crônica
ou
conto.
Em
contraste,
são minguadas as
biografias do
poeta. Há muitas
notícias biográficas, em geral entremeadas nas
análises da
obra.
Biografia,
mesmo, há
apenas uma:
Os Sapatos de Orfeu, do
jornalista José Maria Cançado (Scritta, 1994).
Infelizmente, essa obra está esgotada. Numa
narrativa
sensível, contém
toda a
trajetória de Drummond,
desde a Itabira do
início do
século 20, até sua morte em 1987.
Além de Os Sapatos de Orfeu, existe uma
longa reportagem
sobre Drummond, focada
principalmente no
final da
vida do
poeta. É O
Dossiê Drummond, de
Geneton
Moraes
Neto (citado acima). Inclui
entrevistas
com
amigos, uma
longa
entrevista
com Lygia Fernandes,
namorada do
poeta
durante
quase trinta
anos, e a última entrevista do autor de
Sentimento do Mundo.
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De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.
Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).
Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
―
vazio
―
de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
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