Número 10

São Paulo, quarta-feira, 12 de março de 2003 

"Toda lua é cruel e todo sol, engano." (Arthur Rimbaud)
 


Paulo Leminski


Caros,

O título principal deste boletim é parte de uma das sacadas de Paulo Leminski (1944-1999):

não discuto
com o destino

o que pintar
eu assino


Além de expressar o modo de vida bastante acelerado do poeta curitibano, dá indícios de seu método de composição. Ele era também rápido na fatura de seus textos. Parecia confiar em seus "saques, piques, toques e baques" de poeta beat-samurai-rock'n'roll.

E o resultado, em muitos casos, é simplesmente genial. Os poemas têm ora a profundidade zen de um haikai, ora a esperteza muito malandra de um golpe de capoeira. No primeiro caso, veja ao lado o texto que fala das folhas na sandália ou aquele da flor de laranjeira. Observe a gravidade das sete palavras que interrogam a lua sobre o campo de extermínio em Auschwitz.

O toque malandro aparece quando o poeta se declara o deus-criador do poema ou no poema em que ele associa a própria alma a um elemento químico da tabela periódica de Mendeleiev. Para terminar, o "só lamente uma vez", um poema que já estava pronto há muito tempo só que nem você nem eu tivemos o pique de capturá-lo no ar.

Um abraço,

Carlos Machado



 

O que pintar eu assino

Paulo Leminski

 


a noite
me pinga uma estrela no olho
e passa


     ••o••


duas folhas na sandália

o outono
também quer andar


     ••o••


    hoje à noite
até as estrelas
    cheiram a flor de laranjeira


     ••o••


eu te fiz
agora

sou teu deus
poema

ajoelha
e
me
adora


     ••o••



    tarde de vento
até as árvores
    querem vir para dentro


     ••o••


    lua à vista
brilhavas assim
    sobre auschwitz?


     ••o••



lamente
uma
        vez


     ••o••


    minha alma breve breve
o elemento mais leve
    na tabela de mendeleiev

  
   ••o••


    celeumas   luas
onde se lê uma
    leiam-se duas
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

Poemas extraídos de:
Paulo Leminski
  "à noite"; "duas folhas na sandália";
    "hoje à noite";  "eu te fiz":
    Caprichos & Relaxos
   
Ed. Brasiliense, São Paulo, 1983
  "tarde de vento"; "lua à vista"
    Distraídos Venceremos
   
Ed. Brasiliense, São Paulo, 1987
  "só lamente"; "minha alma; "celeumas"
    La Vie en Close
   
Ed. Brasiliense, 5a. ed., São Paulo, 1994