Número 22

São Paulo, quarta-feira, 4 de junho de 2003 

"Chorar não basta/ pra dignificar/ a tristeza." (Cassiano Ricardo)
 


Fernando Pessoa, em 1928


Caros,

No poema "As Identidades do Poeta", do livro póstumo Farewell, Carlos Drummond de Andrade se põe a desvendar (no final, desiste) o mistério dos múltiplos poetas cultivados por Fernando António Nogueira Pessoa, o poeta Fernando Pessoa (1888-1935). Pergunta Drummond:

Afinal, quem é quem, na maranha
de fingimento que mal finge
e vai tecendo com fios de astúcia
personas mil na vaga estrutura
de um frágil Pessoa?


Quem é quem? Fernando Pessoa, ele mesmo? Ou o paganista Alberto Caeiro? Ou o vanguardista Álvaro de Campos? Ou, ainda, o helenista Ricardo Reis? Claro, haveria mais alternativas, como Bernardo Soares e outros fernandos-pessoas menos citados.

Segundo a biógrafa Maria José de Lencastre, o interessante é que "as personagens Caeiro, Campos e Reis são personagens autônomas cujas emoções, cujos sentimentos e cujo pensamento não são os de Pessoa." Mas a grande novidade, para ela, é que "os heterônimos exprimem a sua vida através da criação poética". Ou seja, os heterônimos são criaturas inventadas que inventam suas próprias obras.

Mas fiquemos por aqui. Este assunto dá pano não só para manga mas para vestir uma cidade inteira. Para este boletim, escolhi quatro poemas: de Caeiro (dois), Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Nenhum do próprio Pessoa — daí o título, "Os outros Pessoas".

Para ser exato, esse título deveria ser "Alguns dos outros Pessoas", já que existem também o guarda-livros Bernardo Soares, autor do Livro do Desassossego, e vários outros menos citados, como o poeta Alexander Search, que escrevia em inglês; o filósofo Antonio Mora, que morreu louco numa clínica psiquiátrica; Raphael Baldaia, também filósofo; e ainda, pelo menos, meia dúzia de outros.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado


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Comparem o poema "Resíduo", de Drummond, com "Nada Fica de Nada", de Ricardo Reis. O verso "De tudo fica um pouco", repetido ao longo do texto drummondiano, parece uma resposta positiva ao niilismo de Reis.

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Ainda sobre Ricardo Reis, não posso deixar de citar o excelente romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago, que é também uma criação baseada na criação da criação. A personagem Lídia, de Reis, reinventada por Saramago, é uma das mulheres mais interessantes que já vi em ficção. Aliás, nas histórias de Saramago, as mulheres são sempre mais expressivas que os homens. Ponto para ele.


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Veja também sobre Fernando Pessoa os boletins:
-
poesia.net 145
- poesia.net 250
 

COMO SURGIRAM OS HETERÔNIMOS

Leia a carta de Pessoa ao crítico Adolfo Casais Monteiro, na qual o poeta relata como criou Caeiro, Campos e Reis: Aqui.

Os outros Pessoas

Alberto Caeiro, Ricardo Reis

e Álvaro de Campos




O LUAR ATRAVÉS DOS ALTOS RAMOS

O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.

Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.

(Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, 1911-12)


 

POUCO ME IMPORTA

Pouco me importa.
Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me
                                              [ importa.

24/10/1917
(Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos, 1913-15)




Pessoa - Rui Pimentel


NADA FICA DE NADA

Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

14/02/1933
(Odes de Ricardo Reis)




CRUZ NA PORTA DA TABACARIA

Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-'star que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.

Quem era? Ora, era quem eu via.
Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.

Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou.
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.

Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.

Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria:
Desde ontem a cidade mudou.

(Poesias de Álvaro de Campos)

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

Poemas extraídos de:
•  "O Luar Através dos Altos Ramos"
    Alberto Caeiro,
    O Guardador de Rebanhos

•  "Pouco me Importa"
    Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos
•  "Nada Fica de Nada"
    Ricardo Reis, Odes de Ricardo Reis
•  "Cruz na Porta da Tabacaria"
    Álvaro de Campos,
    Poesias de Álvaro de Campos
In Fernando Pessoa, Obra Poética
7a. ed., Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1997
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Imagem: Caricatura (detalhe) de Rui Pimentel, representando Pessoa e três heterônimos