Número 42

São Paulo, quarta-feira, 22 de outubro de 2003 

«Um luar velho dói sobre o silêncio.» (Alphonsus de Guimaraens Filho)
 


Erorci Santana


Caros,

Erorci Santana, mineiro de Governador Valadares, onde nasceu em 1960, é autor de quatro livros de poesia: Carnavras (1986); Estatura Leviana (1989); Concertos para Rancor (1993); e Maravilta e Outros Cantares (2001). É também diretor e editor do jornal O Editor, da União Brasileira de Escritores, UBE.

O verso de Erorci Santana não sofre de timidez. O que se descobre em seus poemas é um poeta entusiasmado que cultiva o verso largo e executa sua partitura em tom maior.

Na verdade, o escritor valadarense revela uma explícita inclinação para um lirismo forte, marcado por um tom que caminha para o épico. Esse tom está presente em poemas como "Evocação do Tietê", que estabelece um diálogo com "A Meditação sobre o Tietê", de Mário de Andrade; e também em páginas como "Lenço de Distâncias", uma fala de amor e rancor dirigida à Minas natal. Nesse poema, Erorci lamenta o êxodo de mineiros, talvez numa referências aos famosos migrantes de Governador Valadares.

Mesmo no canto "XXVI" (veja trechos ao lado), encontra-se esse clima quase épico. O "XXVI" foi extraído do livro Maravilta e Outros Cantares. Maravilta, explica o poeta, é um neologismo resultante da combinação de "mar" e "aviltar".

Um cordial abraço,


Carlos Machado

 

 

Um rio que corre na alma

Erorci Santana

 


XXVI

Por mais que eu me seqüestre, aquele rio me
                                                      [ retoma.
E começa a desenhar-se na lembrança
seus contornos imprecisos, rio limpo, atravessando
a alma sem escoriações, sem danos, embora
maculada para sempre a sua líquida história,
evocação inscrita agora, nessa idade sazonada
e madura. Traz ao poema os primeiros signos
                                                     [ do mal.
Primeiro surgem os palustres afogados,
continentais criaturas, depois os assassinados,
cujos inquéritos policiais não decifraram
a condição de peixes compulsórios, os que
tomaram o rio de empréstimo e têm nele
a morada derradeira. Obriga-os ao fundo
um colar de pérolas vulcânicas, utilitárias
da construção civil de grutas.

(...)

Todo rio é da infância e principia com águas
de pouco caso e vai ganhando lenda
e autoridade a cada braça percorrida
para consumo próprio e assombração de inimigos.
E vai morrer, melhor, somar-se ao mar,
cumprindo o seu destino, feito os kamikazes,
os poemas, os meninos. Veste-se
de ira quando violada sua integridade,
ao jugo de substâncias estranhas submetido.
Deve vingar-se semeando a morte se preciso,
pestilências de calibre, delegar armas letais
aos esquadrões de sua guarda para dizimar
aqueles que cometem lesa-majestade contra ele.
Rio que se preze não deve dar testemunho
de pusilanimidade, deve disfarçar seus tristes tons,
creditar à pujança toda venenosa escuma.
E mesmo que os discípulos chorem lágrimas veladas,
esse Mestre deve transitar por entre eles
de cabeça erguida. Um rio assim antepara
os aguilhões da mágoa. Quem obtém um rio assim
não anda mais sozinho. Rio desse naipe,
mesmo turvo como sói, rio deve, até que banhem
o coração de toda humanidade as suas águas. 


 

LENÇO DE DISTÂNCIAS

Batem contra o solo os cascos dos alazões.
Impacientes, querem retesar mais uma vez
as cordas do corpo desse alferes,
o tal de Tiradentes. Amanheceu.
O verdeprimo pio do nambu madureceu
sob o ronco aterrador do trovão.
Choveu e estiou na estação. Qual?
Alguém lavrou e plantou. Nada se colheu?
Há tempo e não há tempo em teus átrios,
tua rude canção, tua faina nas auroras,
tua indizível, absconsa inquietação.
Uma casa, um pote de água fresca,
um coração. Eu te mando este cartão postal
e te aceno com meu lenço de distâncias,
branco de adeus e resignação.
Eu parto e permaneço. Estás e estiveste.
É na marra que me desvencilho
de tuas saúvas, de tuas cigarras,
de tuas lavras, de teu gado nubente,
de tuas águas trancadas, de tuas coivaras de milho.

Pátena e cálix, diamante, melro, arrozal.
Estão submersos os teus homens,
as dadivosas, graciosas e florais mulheres,
os prestos meninos e as pudicas meninas.
Emersos, para teu uso exclusivo, só os adjetivos.

Nas águas abissais desse teu mar
inda florescem oiro e cafezais; há séculos
um estigma de dor rui e rói o teu futuro.
Entanto, tu te ofertas à eternidade, condenada
a ficar cifrada em teu próprio ato de inquisição.

Milenar, vetusta, defesa à invasão
e à morada, ó minha Minas sitiada!
São Paulo, Boston, Lisboa, Tóquio,
aí vão os teus filhos evadidos.
De tuas vidas, de teus óbitos,
não existe assento nos tabeliães.
Tuas possessões atestam que em ti
ninguém morre e nada medra.

Na pedra que tu és a vida se anulou
com medo.
Esse o teu único segredo.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

Erorci Santana
•  In
Maravilta e Outros Cantares
    Alpharrabio Edições, Santo André-SP, 2001
•  In Concerto para Rancor
    Scortecci, São Paulo, 1993