Número 43

São Paulo, quarta-feira, 29 de outubro de 2003 

«O amor me busca/ como um predador» (Salgado Maranhão)
 

Ruy Proença
Ruy Proença


Caros amigos,

O paulistano Ruy Proença, nascido em 1957, vem publicando poemas desde o final dos anos 70. Seus versos impressionam pelo lirismo meditado e perscrutador. Um lirismo que não esconde a ânsia de enxergar outros lados nas coisas, mesmo as mais simples e triviais.

Para este boletim, escolhi três poemas de Ruy Proença. O primeiro, esse belo "A Invisível Cicatriz", apareceu no caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, em 10/11/2002. O segundo, também muito bonito, é "Réquiem", texto que parece inspirado numa jovem morta. Por fim, vem "Píton", uma serpente colhida em notícia de jornal. Um ser, ao mesmo tempo, fantástico e natural.

Além de ter participado de diversas antologias coletivas, editadas aqui e no exterior, Ruy Proença publicou três livros de poesia: Pequenos Séculos (Klaxon, São Paulo, 1985); A Lua Investirá com Seus Chifres (Giordano, São Paulo, 1996); e Como um Dia Come o Outro (Nankin, São Paulo, 1999). Deste último volume retirei os poemas "Réquiem" e "Píton".

Ruy — que, profissionalmente, é engenheiro de minas — também é tradutor. Ele verteu para o português uma coletânea do polígrafo francês Boris Vian (1920-1959): Boris Vian Poemas e Canções (Nankin, 2001).


Um abraço,


Carlos Machado

 

                    

A cicatriz e a serpente

Ruy Proença

 


A INVISÍVEL CICATRIZ

nascer
é ser novinho em folha
e já deixar cicatriz

viver
é cobrir os outros
de cicatrizes
e ser coberto

mas nem tudo
são cicatrizes

algumas incisões
definitivamente
não se fecham

por isso
aliás
morremos
 

 

RÉQUIEM

É tudo mentira.

Tu não verás
a lua apodrecer
entre os edifícios

nem o turvo rio
perder o pulso.

Não verás cortarem
a luz do quarteirão

nem tampouco tombar
a árvore na tempestade.

É tudo mentira.

O sol da mais longa noite
voltará a coroar teu céu.

Terás ainda de sobrevoar
o fogo do asfalto

cuidando para não queimar
teus jovens pés descalços.

E um vento lento
cego
bom
sem sobrenome

arrepiará
o espaço justo
infinito
sob tua saia.

Nele
partirás a galope.



PÍTON

Nasceu a serpente
de duas cabeças.

Os profetas
não vaticinaram o insólito

achado no Sri Lanka.

Nasceu de ovo
natural.

O fotógrafo antecipou-se aos profetas
e registrou-a de forma cabal.

A serpente
única no mundo
é perfeita:

tem quatro olhos
duas línguas
dois cérebros
um estômago.

Deus anda
cada vez mais
científico.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

Ruy Proença
•   "A Invisível Cicatriz"
   
In Folha de S. Paulo, caderno Mais   
   
10/11/2002
•   "Réquiem"; "Píton"
   
In Como um Dia Come o Outro   
    Nankin Editorial, São Paulo, 1999