Hilda Hilst
Caros amigos,
Escrever poesia amorosa não é tarefa para meros sofredores apaixonados e
lamurientos. Drummond deu o alerta: "Os impactos de amor não são poesia". A
poeta paulista Hilda Hilst (1930-2004) já sabia, de cor, essa lição. Ela escreve
poemas de amor nos quais não há dores-de-cotovelo, nem toda essa frágil ciumeira
que empapa os lenços da música popular.
São textos profundos, em que o sentimento amoroso é apenas um dos cordéis que
ligam o eu poético à vida. Os três poemas mostrados aqui foram extraídos da
coletânea Do Amor. Embora apresente uma incrível unidade, esse volume é
uma antologia da poesia amorosa de Hilda, extraído de livros publicados entre
1959 a 1995.
Nascida em Jaú–SP, Hilda Hilst foi
poeta, dramaturga e ficcionista. Conheça mais sobre os trabalhos de Hilda em seu
site oficial.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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A fome do primeiro grito
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Hilda Hilst |
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XII
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
desejasse.
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há um tempo.
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
De Júbilo Memória
Noviciado da Paixão (1974)
XLII
As barcas afundadas. Cintilantes
Sob o rio. E é assim o poema. Cintilante
E obscura barca ardendo sob as águas.
Palavras eu as fiz nascer
Dentro de tua garganta.
Úmidas algumas, de transparente raiz:
Um molhado de línguas e de dentes.
Outras de geometria. Finas, angulosas
Como são as tuas
Quando falam de poetas, de poesia.
As barcas afundadas. Minhas palavras.
Mas poderão arder luas de eternidade.
E doutas, de ironia as tuas
Só através de minha vida vão viver.
De Amavisse (1989)
LXII
Que as barcaças do Tempo me devolvam
A primitiva urna de palavras.
Que me devolvam a ti e o teu rosto
Como desde sempre o conheci: pungente
Mas cintilando de vida, renovado
Como se o sol e o rosto caminhassem
Porque vinha de um a luz do outro.
Que me devolvam a noite, o espaço
De me sentir tão vasta e pertencida
Como se as águas e madeiras de todas as barcaças
Se fizessem matéria rediviva, adolescência e mito.
Que eu te devolva a fome do meu primeiro grito.
De Amavisse (1989)
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