Número 72

São Paulo, quarta-feira, 9 de junho de 2004 

«O poeta não inventa. Ele escuta.» (Jean Cocteau)
 


Dalila Teles Veras



Caros amigos,


Escrever sobre acontecimentos dolorosos — por exemplo, a perda de entes queridos — é tarefa das mais cáusticas para o poeta. A dor deveras sentida constitui um estorvo também para o poema. Primeiro, porque pode toldar o rigor autocrítico do poeta. Depois, pela dificuldade do próprio tema. É preciso ter um controle exato das palavras e emoções para sair bem dessa experiência existencial e poética.

O volume Vestígios (2003), da poeta Dalila Telas Veras, é um exemplo de obra bem-sucedida que resulta de um momento assim de desassossego: no caso, o desaparecimento da mãe da escritora, após uma desagradável convivência com médicos, hospitais e tecnologias curativas. É impressionante como Dalila conseguiu transfigurar esses momentos em boa poesia.

Os poemas apresentados aqui são uma amostra desse trabalho. Portuguesa da Ilha da Madeira, Dalila vive no Brasil desde a infância. Antes de Vestígios, Dalila Teles Veras publicou seis livros de poesia, que estão reunidos em À Janela dos Dias Poesia Quase Toda (Alpharrabio, 2002). Animadora cultural, ex-diretora durante longo período da União Brasileira de Escritores, ela desenvolve intensa atividade, publicando livros e promovendo oficinas, encontros, debates.

Desde 1992 Dalila criou e dirige um ambiente cultural próprio, a Alpharrabio, que reúne livraria, editora e espaço para eventos,  com sede em Santo André, na área metropolitana de São Paulo.

Para conhecer melhor o trabalho da poeta, visite o seu site no seguinte endereço:
www.dalila.telesveras.nom.br


Um abraço,

Carlos Machado

 

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À beira da vida

Dalila Teles Veras

 



TERAPIA INTENSIVA


A ceifeira ronda
à volta das máquinas
ao redor dos tubos
no ar infectado de dor
sombra indesejável

A ciência brinca
experimenta, põe e tira
mórbido esconde-esconde
fingida presença de Deus

Um corpo respira
(a máquina opera o milagre)
um corpo não mais senhor
do gesto, do gosto, do querer
corpo, cobaia, objeto
à mercê do progresso

A ceifeira espera
e sabe da hora
A ciência não



RITO DE PASSAGEM


Que sabemos nós
seres chorosos
à beira da morte
do outro?

Que sabemos nós
seres medrosos
à beira da vida
à beira de nós mesmos?

Que sabemos nós
da barca à espera
da passagem
do mistério?

Nada

Por isso tememos



DEVER CUMPRIDO


Brinca de eternidade
a jovem médica
Bagagem abarrotada
de ciência e tecnologia

Eletrodos ligados
incisões perfeitas
:
o dever manda
as mãos, firmes, obedecem
(ignora o calafrio
da morte pressentida)

Eis o prodígio
:
a vida devolvida
mecânica (e eterna?)

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004

Dalila Teles Veras
In Vestígios
Alpharrabio Edições, Santo André-SP, 2003