NASCIMENTO DO POEMA
É preciso que venha de longe
do vento mais antigo
ou da morte
é preciso que venha impreciso
inesperado como a rosa
ou como o riso
o poema inecessário.
É preciso que ferido de amor
entre pombos
ou nas mansas colinas
que o ódio afaga
ele venha
sob o látego da insônia
morto e preservado.
E então desperta
para o rito da forma
lúcida
tranqüila:
senhor do duplo reino
coroado
de sóis e luas.
De Andanças (1948-1970)
O VENTO
Na palma do vento
pouso a fronte. Nele confio.
A quem confiaria senão a ele
este rude labor?
Abandono-me à tormenta
(lumes mastros
gaivotas do mar próximo).
Enreda-me a noite.
Mas dele são os dedos leves
que me fecham os olhos. E é manhã.
De Jardins (Esconderijos) (1979)
MULHER E PÁSSARO
Voltamos ao jardim
ao banco lavado pela chuva.
Pedimos o verde ao verde
a flor à flor
sem quebrar-lhe a haste. Bastaria a manhã.
(Nossa presença
desalinha ar e folhas
num frêmito.)
Mas se nada pedimos
como quem dorme seguindo a linha natural
do corpo
respiramos o puro abandono:
um pássaro alveja o azul (sem par)
ultrapassa o muro do possível
e assim damos um ao outro
a súbita presença
do Céu.
De Talhamar (1982)
PARTITURA COM LUA
Notação de pássaros
no fio da rua:
mínimas semínimas pausas.
Sobre o piano rosas estremecem.
Cadências de alma sobressaltam um público
desalento e ao relento ressoam
algumas dissonâncias (tropel de potros
presos numa sala). Mas por acaso em pura sinfonia
pássaros refazem a partitura
no heptacorde dos fios da rua.
Ei-la tão plena do dia findo azulado
—
a lua soberana e alta
do sono deste outono.
De Poemas em Fuga (1997)