Número 76

São Paulo, quarta-feira, 7 de julho de 2004 

«Todos os deuses são hóspedes do sonho.» (Myriam Fraga)
 


Dora Ferreira da Silva



Caros amigos,

Quem lê os poemas da paulista  Dora Ferreira da Silva logo aprende a conviver e se encantar com a leveza dos pássaros que pousam e levantam vôo ao longo de toda a obra. É quase um encantamento, um jogo mágico. Pássaros e música.

Reconhecida como alta expressão da poesia meditativa no Brasil, Dora é também tradutora, principalmente do alemão. É dela a versão mais conhecida entre nós das Elegias de Duíno, de Rainer Maria Rilke (poesia.net n. 50). Também pelos filtros poéticos de Dora Ferreira da Silva passaram poemas de Hölderlin e Novalis, Saint-John Perse e San Juan de la Cruz.

Além de poeta, Dora destacou-se como editora de duas  importantes revistas de cultura: Diálogo, nos anos 50, ao lado do marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva (1916-1963); e Cavalo Azul, nos anos 80. A primeira era uma publicação de idéias e a outra, mais voltada para a poesia.

A obra poética de Dora Ferreira da Silva foi compilada em 1999 no volume Poesia Reunida (Topbooks), do qual foram extraídos os textos ao lado.


Um abraço,


Carlos Machado

 


Dora Ferreira da Silva faleceu em 7 de abril de 2006, aos 86 anos.

(11/04/2006)

Mulher e pássaros

Dora Ferreira da Silva

 


NASCIMENTO DO POEMA

É preciso que venha de longe
do vento mais antigo
ou da morte
é preciso que venha impreciso
inesperado como a rosa
ou como o riso
o poema inecessário.

É preciso que ferido de amor
entre pombos
ou nas mansas colinas
que o ódio afaga
ele venha
sob o látego da insônia
morto e preservado.

E então desperta
para o rito da forma
lúcida
tranqüila:
senhor do duplo reino
coroado
de sóis e luas.

                         De Andanças (1948-1970)


O VENTO

Na palma do vento
pouso a fronte. Nele confio.
A quem confiaria senão a ele
este rude labor?

Abandono-me à tormenta
(lumes mastros
gaivotas do mar próximo).

Enreda-me a noite.
Mas dele são os dedos leves
que me fecham os olhos. E é manhã.

 

                         De Jardins (Esconderijos) (1979)
 

 

MULHER E PÁSSARO

Voltamos ao jardim
ao banco lavado pela chuva.
Pedimos o verde ao verde
a flor à flor
sem quebrar-lhe a haste. Bastaria a manhã.
(Nossa presença
desalinha ar e folhas
num frêmito.)

Mas se nada pedimos
como quem dorme seguindo a linha natural
do corpo
respiramos o puro abandono:
um pássaro alveja o azul (sem par)
ultrapassa o muro do possível
e assim damos um ao outro
a súbita presença
do Céu.
 

                         De Talhamar (1982)
 

 

PARTITURA COM LUA


Notação de pássaros

no fio da rua:

mínimas semínimas pausas.

Sobre o piano rosas estremecem.

Cadências de alma sobressaltam um público

desalento e ao relento ressoam

algumas dissonâncias (tropel de potros

presos numa sala). Mas por acaso em pura sinfonia

pássaros refazem a partitura

no heptacorde dos fios da rua.

Ei-la tão plena do dia findo azulado
a lua soberana e alta

do sono deste outono.


                         De Poemas em Fuga (1997)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004
 


Dora Ferreira da Silva
In Poesia Reunida   
Topbooks, Rio de Janeiro, 1999