Nuno Júdice
Caros amigos,
Encontrar um bom poeta é sempre um acontecimento gratificante para quem gosta de
poesia e, mais ainda, para quem — como eu — virou caçador de poesia. Portanto,
foi com grande satisfação que tomei contato com o trabalho do poeta português
Nuno Júdice (1949-).
Quem me chamou a atenção para esse escritor, há cerca de um ano, foi a
professora e também poeta Vera Lúcia de Oliveira (veja
poesia.net n. 40). Agora, chega às livrarias
brasileiras o volume Por Dentro do Fruto a Chuva, uma antologia de Júdice
organizada e prefaciada exatamente por Vera Lúcia de Oliveira. Salvo engano, é o
primeiro livro do autor publicado no Brasil.
Poeta, ensaísta e também ficcionista, Nuno Júdice é um dos nomes de destaque na
literatura portuguesa contemporânea. O que chama a atenção em sua poesia é a
capacidade de revelar o lirismo entranhado nas coisas, nos gestos, na
convivência entre as pessoas. "Gosto das palavras exactas, as que acertam com o
centro das coisas", escreve ele.
Talvez por causa dessa viagem por dentro dos gestos e das coisas, os poemas de Júdice sejam um tanto sombrios. Para Vera Lúcia de Oliveira, "a luz que lambe
seus versos é enevoada, luz nórdica difusa, que ilumina em lusco-fusco, sem
revelar totalmente, mas sem ofuscar com sua intensidade".
Diante disso, não se espere encontrar nos poemas de Júdice movimentos
grandiosos, declarações estridentes. Ele trabalha com um diapasão mais suave,
mais reflexivo. Sua poesia tem a marca inescapável da tradição lírica
portuguesa. O discurso é lógico, mesmo quando cria asas. Mas, ao mesmo tempo, é
um discurso plenamente moderno.
Observem, por exemplo, os poemas "Amor" e "O Amor", transcritos ao lado. No
primeiro, vem a constatação do pequeno poder das palavras diante da vida. No
segundo, a constatação de que existe algo muito forte, talvez um deus, numa
relação amorosa. Um deus que os amantes inventam e alimentam durante a noite,
para que o amor continue "enquanto o dia não chega".
Um abraço,
Carlos Machado
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Enquanto o dia não chega
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Nuno Júdice |
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Roman Zakrzewski, pintor polonês, 1998/02
EPIGRAMA
A loucura é a grandeza dos simples:
assim são eles mais do que eles,
colhendo flores brancas e reles.
Os doidos, de olhos arregalados,
crescem devagar como as árvores:
só não dão folhas nem frutos.
Amo as suas frases sem sentido:
dobram nelas os sinos abstractos
de um campanário sem janelas.
Dai-me, ó loucos, a vossa razão
—
esses remos de subir o tempo
até à fonte de um deus obsceno e nu.
De A Condescendência do Ser (1988)
Roman Zakrzewski, 1995/02
AMOR
Um poema, dizes, em que
o amor se exprima, tudo
resumindo em palavras.
Mas o que fica
nas palavras
daquilo que se viveu?
Um pó de sílabas,
o ritmo pobre da
gramática, rimas sem nexo...
De «Meditação sobre
Ruínas» (1994)
Roman Zakrzewski, 1999/01
O LUGAR DAS COISAS
Gosto das palavras exactas, as que acertam
com o centro das coisas, e quando as encontro
é como se as coisas saíssem de dentro delas.
Essas palavras são duras como os objectos
que designam, pedra, tronco, ferro, o vidro
de espelhos quebrados com o calor da tarde.
Tento incendiá-las quando escrevo, como se
o fogo saísse de dentro da frase, e se espalhasse
pelo campo da página numa devastação de
[ sílabas.
Então, atiro sobre as palavras outras palavras,
água, pó, terra, o ar seco do verão, para que a
[ voz
não fique queimada nesta paisagem negra.
Recolho os restos, os adjectivos, os advérbios,
artigos, preposições, para que só as palavras que
[ indicam
as coisas fiquem no lugar que já tinham.
Pouco importa que as frases percam o sentido. O
que fica são os nomes das coisas, para que as
[ coisas saiam
de dentro deles e as possamos ver nos seus
[ lugares.
Roman Zakrzewski, 2004/01
O AMOR
Deus — talvez esteja aqui, neste
pedaço de mim e de ti, ou naquilo que,
de ti, em mim ficou. Está nos teus
lábios, na tua voz, nos teus olhos,
e talvez ande por entre os teus cabelos,
ou nesses fios abstractos que desfolho,
com os dedos da memória, quando os
evoco.
Existe: é o que sei quando
me lembro de ti. Uma relação pode durar
o que se quiser; será, no entanto, essa
impressão divina que faz a sua permanência? Ou
impõe-se devagar, como as coisas a que o
tempo nos habitua, sem se dar por isso, com
a pressão subtil da vida?
Um deus não precisa do tempo para
existir: nós, sim. E o tempo corre por entre
estas ausências, mete-se no próprio
instante em que estamos juntos, foge
por entre as palavras que trocamos, eu
e tu, para que um e outro as levemos
connosco, e com elas o que somos,
a ânsia efémera dos corpos, o
mais fundo desejo das almas.
Aqui, um deus não vive sozinho,
quando o amor nos junta. Desce dos confins
da eternidade, abandona o mais remoto dos
infinitos, e senta-se aos pés da cama, como
um cão, ouvindo a música da noite. Um
deus só existe enquanto o dia não chega; por
isso adiamos a madrugada, para que não
nos abandone, como se um deus
não pudesse existir para lá do amor, ou
o amor não se pudesse fazer sem um deus.
De Cartografia de
Emoções (2001)
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