Número 80

São Paulo, quarta-feira, 4 de agosto de 2004 

«Poeta, a eternidade/ é só o instante em que se pousa/ o lápis.» (Antonio Brasileiro)
 


Augusto dos Anjos


Caros,

O paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914) é um poeta singular. Baudelairiano de primeira linha, ele produz aqueles poemas longos, cheios de um materialismo brutal e pessimista. O tema geral é a morte. Para o gosto atual, são versos  cansativos, fora de propósito. Mas dos Anjos impressiona. Ao lado, as quadras iniciais do célebre "As Cismas do Destino", um  poema gigante, com exatas 105 estrofes! Para quem não sabe, a casa do Agra, que abre o poema, tem tudo a ver com o clima: é o necrotério.

Morto aos 30 anos, Augusto dos Anjos não gozou em vida de nenhum reconhecimento público. Segundo Otto Maria Carpeaux, a notoriedade póstuma do poeta lhe foi garantida por leitores populares. Diz Carpeaux: "A abundância de estranhas expressões científicas e de palavras esquisitas em seus versos atraiu os leitores semicultos que não compreenderam nada de sua poesia e ficavam, no entanto, fascinados pelas metáforas de decomposição em seus versos assim como estavam em decomposição suas vidas." Por causa disso, conclui, dos Anjos é um dos poetas mais lidos do Brasil.

Carpeaux também esteve entre os críticos que ressaltaram a grandeza da poesia de Augusto dos Anjos, antes relegada à prateleira do mau gosto. O certo é que, até hoje, essa poesia continua a exercer um poderoso fascínio que passa de geração para geração. E isso ocorre mesmo entre gente culta, de amplas leituras. Portanto, o exotismo verbal apontado por Carpeaux pode, sim, ter contribuído para a popularidade do poeta. Mas não deve ser o único fator. Eu mesmo já vi, aqui em São Paulo, jovens de 30 anos, ou menos, que sabem de cor longos textos do poeta paraibano.

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Há uma história estarrecedora — embora não comprovada — em torno do soneto "A Árvore da Serra". Conta-se que Augusto dos Anjos teria se apaixonado por uma jovem retirante, filha de um vaqueiro. Isso era simplesmente intolerável para a família de Augusto, dona de engenho de açúcar. A mãe dele teria mandado dar uma surra na moça, que estava grávida (do poeta?), e  então abortou e morreu.

Alguns especialistas na obra de Augusto dos Anjos interpretam o soneto "A Árvore da Serra" não como uma cena ecológica, mas como a transposição, em versos, dessa história tenebrosa. Dizem que o amargor e o pessimismo de Augusto vêm daí.

Conta-se também que o pai, no episódio, teria ficado ao lado de Augusto, mas era dominado pela mãe. Para esses especialistas, isso também explicaria por que o poeta escreveu vários textos citando o pai e nunca falou sobre a mãe. Então, a árvore cortada seria a amada do poeta. E o próprio Augusto é que se teria abraçado àquele tronco "e nunca mais se levantou da terra". Consta também que, embora não haja registro histórico, o caso era de amplo conhecimento na região.

Agora, os créditos: retirei a história sobre "A Árvore da Serra" de dois artigos que estão no site do Jornal de Poesia: um do contista baiano Hélio Pólvora e o outro do poeta cearense Soares Feitosa, fundador e editor do Jornal de Poesia.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado
 

As cismas do destino

        Augusto dos Anjos                




AS CISMAS DO DESTINO

                                 (trecho inicial)

Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!

Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.

Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!

A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!

Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!

Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.

E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.

(...)


 

VENCEDOR

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração
estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde domá-lo enfim ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!





A ÁRVORE DA SERRA

— As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

— Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...

— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!


 

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Carlos Machado, 2004


Augusto dos Anjos
In  Eu/Outra Poesia
Círculo do Livro, São Paulo, s/data