Número 89

São Paulo, quarta-feira, 6 de outubro de 2004 

«O poema é um caracol onde ressoa a música do mundo.» (Octavio Paz)
 

Antonio Carlos Secchin
Antonio Carlos Secchin


Caros amigos,

Talvez vocês conheçam o carioca Antonio Carlos Secchin (1952-) mais como ensaísta do que como poeta. Além de ter produzido o premiado ensaio João Cabral – A Poesia do Menos (1983), uma detida análise da obra cabralina, e de ter publicado outros ensaios em livro, Secchin escreve com freqüência para a imprensa não especializada. Professor de literatura brasileira, ele é também requisitado para dar palestras e conferências no Brasil e no exterior.

Mas quem comparece aqui é o Secchin poeta. Em seu trabalho mais recente, o livro Todos os Ventos (Nova Fronteira, 2002), ele passa a limpo sua poesia, apresentando poemas representativos de vários momentos em sua trajetória, no período de 1973 a 2002. Os poemas mostrados aqui pertencem a essa coletânea.

No soneto “Com Todo o Amor”, o poeta parte de uma dedicatória amorosa escrita num livro antigo. Em “Estou Ali”, o autor contempla uma foto dele mesmo quando criança. “No espaço entre o sorriso e o sapato/ há um corpo que bem pode ser o meu.”

Mudando de paisagem, o olhar do poeta, em "Aire", se aventura numa praça de Espanha, entre guitarras, pátios e “a lábia do acaso”. Por fim, num movimento metalingüístico — os metapoemas são muito caros a Secchin —, ele escreve, em "Toda Linguagem": “O que eu calo e o que não digo/ atropelam meu percurso”. Afinal, conclui, localizando-se “no subsolo do discurso”.

Eleito este ano, Secchin é o mais recente ocupante de uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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POEMAS DE SOPHIA

No boletim anterior, escrevi que a poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) não tinha nenhum livro publicado no Brasil. Era verdade. Agora, a Companhia das Letras está lançando uma antologia poética de Sophia chamada Poemas Escolhidos, organizada por Vilma Arêas.

No subsolo do discurso

Antonio Carlos Secchin

 



Rafal Olbinski - Gloriana
Rafal Olbinski, pintor polonês, Gloriana



"COM TODO O AMOR..."


                          A Waldemar Torres

Com todo o amor de Amaro de Oliveira.
São Paulo, 2 de abril de 39.
O autógrafo se espalha em folha inteira,
enredando o leitor, que se comove,

não na história narrada pelo texto,
mas na letra do amor, que agora move
a trama envelhecida de outro enredo,
convidando uma dama a que o prove.

Catharina, Tereza, Ignez, Amália?
Não se percebe o nome, está extinta
a pólvora escondida na palavra,

na escrita escura do que já fugiu.
Perdido entre os papéis de minha casa,
Amaro ama alguém no mês de abril.

 

 



Rafal Olbinski - Dançarinas
Rafal Olbinski, Dançarinas


"ESTOU ALI"

                                             A Alberto da Costa e Silva

Estou ali, quem sabe eu seja apenas
a foto de um garoto que morreu.
No espaço entre o sorriso e o sapato
há um corpo que bem pode ser o meu.

Ou talvez seja eu o seu espelho,
e olhar reflete em mim algum passado:
o cheiro das goiabas na fruteira,
o murmúrio das águas no telhado.

No retrato outra imagem se condensa:
percebo que apesar de quase gêmeos
nós dois somos somente a chama inútil

contra a sombra da noite que nos trai.
Das mãos dele recolho o que me resta.
Eu o chamo de filho — e é meu pai.




Rafal Olbinski - Confissão silenciosa
Rafal Olbinski, Confissão silenciosa


AIRE

                                             A Lucila Nogueira

Áspera guitarra rasga o ar da praça.
Há um pássaro parado na garganta de Carmen.

Embarca o pássaro na lábia do acaso.
Ácido cenário de pátios e compassos.

Passam rápidos máscaras e presságios.
Espada e Espanha, abraço incendiário,

cantam alto as artes do espetáculo:
lançar-se à brasa e matar-se no salto.
 

 



Rafal Olbinski - Mona Lisa in Venice
Rafal Olbinski, Mona Lisa em Veneza


TODA LINGUAGEM

Toda linguagem
é vertigem,
farsa, verso fingido
no desígnio do signo
que me cria, ao criá-lo.
O que faço, o que desmonto,
são imagens corroídas,
ruínas de linguagem,
vozes avaras e mentidas.
O que eu calo e o que não digo
atropelam meu percurso.
Respiro o espaço
fraturado pela fala
e me deponho, inverso,
no subsolo do discurso.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004

Antonio Carlos Secchin
    In Todos os Ventos   
    Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2002
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* Imagens: obras do pintor e ilustrador polonês Rafal Olbinski (1943-), que define sua arte como “surrealismo poético”. Olbinski vive nos EUA.