Antonio Carlos Secchin
Caros amigos,
Talvez vocês conheçam o carioca Antonio Carlos Secchin (1952-) mais como
ensaísta do que como poeta. Além de ter produzido o premiado ensaio João Cabral
– A Poesia do Menos (1983), uma detida análise da obra cabralina, e de ter
publicado outros ensaios em livro, Secchin escreve com freqüência para a
imprensa não especializada. Professor de literatura brasileira, ele é também
requisitado para dar palestras e conferências no Brasil e no exterior.
Mas quem comparece aqui é o Secchin poeta. Em seu trabalho mais recente, o livro
Todos os Ventos (Nova Fronteira, 2002), ele passa a limpo sua poesia,
apresentando poemas representativos de vários momentos em sua trajetória, no
período de 1973 a 2002. Os poemas mostrados aqui pertencem a essa
coletânea.
No soneto “Com Todo o Amor”, o poeta parte de uma dedicatória amorosa escrita
num livro antigo. Em “Estou Ali”, o autor contempla uma foto dele mesmo quando
criança. “No espaço entre o sorriso e o sapato/ há um corpo que bem pode ser o
meu.”
Mudando de paisagem, o olhar do poeta, em "Aire", se aventura numa praça de Espanha,
entre guitarras, pátios e “a lábia do acaso”. Por fim, num movimento metalingüístico
—
os metapoemas são muito caros a Secchin —, ele escreve, em "Toda Linguagem": “O que eu calo e o que não digo/ atropelam meu percurso”. Afinal, conclui,
localizando-se “no subsolo do discurso”.
Eleito este ano, Secchin é o mais recente ocupante de uma cadeira na Academia
Brasileira de Letras.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
• POEMAS DE
SOPHIA
No boletim anterior, escrevi que a poeta portuguesa
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) não tinha nenhum livro
publicado no Brasil. Era verdade. Agora, a Companhia das Letras está
lançando uma antologia poética de Sophia chamada Poemas Escolhidos, organizada
por Vilma Arêas. |
No subsolo do discurso
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Antonio Carlos Secchin |
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Rafal Olbinski, pintor polonês, Gloriana
"COM TODO O AMOR..."
A Waldemar Torres
Com todo o amor de Amaro de Oliveira.
São Paulo, 2 de abril de 39.
O autógrafo se espalha em folha inteira,
enredando o leitor, que se comove,
não na história narrada pelo texto,
mas na letra do amor, que agora move
a trama envelhecida de outro enredo,
convidando uma dama a que o prove.
Catharina, Tereza, Ignez, Amália?
Não se percebe o nome, está extinta
a pólvora escondida na palavra,
na escrita escura do que já fugiu.
Perdido entre os papéis de minha casa,
Amaro ama alguém no mês de abril.
Rafal Olbinski, Dançarinas
"ESTOU ALI"
A Alberto da Costa e Silva
Estou ali, quem sabe eu seja apenas
a foto de um garoto que morreu.
No espaço entre o sorriso e o sapato
há um corpo que bem pode ser o meu.
Ou talvez seja eu o seu espelho,
e olhar reflete em mim algum passado:
o cheiro das goiabas na fruteira,
o murmúrio das águas no telhado.
No retrato outra imagem se condensa:
percebo que apesar de quase gêmeos
nós dois somos somente a chama inútil
contra a sombra da noite que nos trai.
Das mãos dele recolho o que me resta.
Eu o chamo de filho — e é meu pai.
Rafal Olbinski, Confissão silenciosa
AIRE
A Lucila Nogueira
Áspera guitarra rasga o ar da praça.
Há um pássaro parado na garganta de Carmen.
Embarca o pássaro na lábia do acaso.
Ácido cenário de pátios e compassos.
Passam rápidos máscaras e presságios.
Espada e Espanha, abraço incendiário,
cantam alto as artes do espetáculo:
lançar-se à brasa e matar-se no salto.
Rafal Olbinski, Mona Lisa em Veneza
TODA LINGUAGEM
Toda linguagem
é vertigem,
farsa, verso fingido
no desígnio do signo
que me cria, ao criá-lo.
O que faço, o que desmonto,
são imagens corroídas,
ruínas de linguagem,
vozes avaras e mentidas.
O que eu calo e o que não digo
atropelam meu percurso.
Respiro o espaço
fraturado pela fala
e me deponho, inverso,
no subsolo do discurso.
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