Número 90

São Paulo, quarta-feira, 13 de outubro de 2004 

«Dois amantes que são? Dois inimigos» (Carlos Drummond de Andrade)
 


Nauro Machado


Caros amigos,


Se um poeta do calibre e da consistência do maranhense Nauro Machado (1935-)  se mantém quase desconhecido neste país, a culpa certamente não é dele. Nauro Machado tem cumprido com brilhantismo a parte que cabe ao poeta: escrever. E o faz sem titubeios. Estreante em 1958, ele já tem mais de 30 livros publicados. Detalhe: livros de poesia.

Dono de um lirismo vigoroso, Nauro é atento observador do espetáculo do mundo. E, como todo bom poeta, não se deixa enredar nas cordas da ilusão. Talvez por isso o poeta e ensaísta Ricardo Leão entenda que na obra singular desse maranhense existem "traços de reflexão existencial angustiada e violenta que encontra poucas comparações na lírica de língua portuguesa".

Além da reflexão existencial, destaca-se a impressionante fecundidade de Nauro Machado. Pouquíssimos poetas apresentam acervo tão vasto e dedicação tão intensa à poesia. Os poemas ao lado foram extraídos do livro Antologia Poética, de 1998, que contém poemas de 27 livros do poeta, com datas de 1958 a 1995.

Mas a obra não pára aí. Há muito mais: A Travessia do Ródano (1997); Túnica de Ecos (1999); Jardim de Infância (2000); Nau de Urano (2002); e A Rocha e Rosca (2003). O livro de 2002 é também uma antologia que reúne mais de 800 sonetos. Haja fôlego.

Naturalmente, não vai aí nesse registro das obras de Nauro Machado uma louvação da quantidade pela quantidade. É antes o reconhecimento do trabalho de um poeta dedicado a seu ofício e que produz peças da mais fina lavra. Basta ler os dois primeiros poemas ao lado para saber do que estou falando.

Vale destacar o chamado do poeta, em sua "Prece à Boca da Minh'Alma":

Mas não te tornes em bicho,
nem percas o ser humano



Abração, e até mais,


Carlos Machado

 

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COINCIDÊNCIA MULTIMÍDIA

«Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra»
(Carlos Drummond de Andrade, no poema "Nosso Tempo", in A Rosa do Povo, 1945)

«Hey, my name is called disturbance»
(Mick Jagger e Keith Richards, dos Rolling Stones, na canção "Street Fighting Man", do LP Beggars Banquet, 1968)


Obs.: Em inglês, um dos sinônimos de disturbance é tumult, da mesma raiz latina (tumultus) que o nosso "tumulto".

Não percas o ser humano

Nauro Machado

 

 

FILA INDIANA

Um atrás do outro, atrás um do outro,
ano após ano, ano após outros,
minuto após minuto, século
após séculos, continuam

(a conduzir seus madeiros
na perícia dos próprios dramas)

um atrás do outro, atrás um do outro,
ano após ano, ano após outros,
minuto após minuto, século
após séculos, e de novo

um atrás do outro, atrás um do outro,
até a surdez final do pó.


               De O Calcanhar do Humano (1981)
 

A SENTENÇA

Ó solidão, minha mãe
em toda parte do corpo,
meu escaler sem esperança
no oceano dos naufrágios.

Só as árvores estão vivas
no meu espírito que é morto.
Ó sinos, pombas errantes
no bronze da eternidade!

Remai, tempo de amargura,
às praias sem amanhã.
Ó solidão, minha mãe,
medusa erguida sem pai.


BALANÇA COMERCIAL

Troco sóis pelas naus,
os sãos pelos loucos troco,
na embriaguez com que soco
minha fúria no meu caos.

Tudo é uma questão de troca:
noves fora, restam nove,
até que outro alguém nos prove
que Deus é um dente sem broca,

que Deus é um maxilar
independente do alvéolo
tal como independente é o
ser do seu próprio estar.

Onde estamos não nos cabe,
onde estamos não comporta
a nossa alma que é uma morta
que do corpo nada sabe.

Ó desejo para fora
a romper-nos desde o dentro!
Ah, sairmos do nosso centro
para sempre e desde agora!

Abandonarmos casca e ovo,
abandonarmos a casca,
é um desejo que nos lasca
para quebrar-nos de novo.

Sermos gema, sem ser clara!
Sermos o Ser que É, não o que é
uma coisa chã e qualquer
nesta cara, a mesma cara!

Termos olhos, que são dois,
termos olhos, só dois a esmo:
troco tudo por uns bois
e até a alma comigo mesmo!

Troco tudo, como troco,
se trocar eu me pudera,
esta verdade quimera
do sonho com que me soco.


               De O Signo das Tetas (1984)


PRECE À BOCA DA MINHA ALMA

Não te transformes em bicho,
ó forma incorpórea minha,
só porque animal capricho
perdeu o humano que eu tinha.

Guarda, do animal, o alheio
esquecimento. E somente.
Mas lembra aquele outro seio
que te nutriu a boca e a mente.

E recorda, sobretudo,
que não babas ou engatinhas,
a não ser quando te escuto
pelos becos, dentre as vinhas.

Vive como um homem morre:
em solidão e na esperança.
guardando a fé que socorre
em mim, semivelho, a criança.

Mas não te tornes em bicho,
nem percas o ser humano,
só porque a tara (ou o capricho)
deu-me este existir insano.

               De Do Eterno Indeferido (1971)
 

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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004

Nauro Machado
In Antologia Poética
Fundação Biblioteca Nacional: Universidade Mogi das Cruzes
Imago Editora, Rio de Janeiro, 1998