Reynaldo Damazio
Caros amigos,
Editor, crítico literário e animador cultural, o paulistano Reynaldo Damazio
(1963) também escreve poesia. Em Nu entre Nuvens (2001), seu livro de
estréia como poeta, ele se aventura num campo onde antes trafegara apenas como
ensaísta.
Quando Damazio decide desnudar-se entre nuvens, não é difícil perceber que
permanece ativo um indisfarçável vaso comunicante entre o crítico e o poeta. Boa
parte dos poemas do livro tem fatura metalingüística ou faz referência a
elementos de análise do texto.
Assim, com um olho no peixe e o outro no gato, Reynaldo Damazio entra em campo
bem armado. Sem ingenuidade. Como sugere no poema "Treze", ele sabe
que há sempre o perigo de a palavra poética tornar-se um "lance de dados
viciados".
Em toda a viagem de Nu entre Nuvens, observa-se o esforço de fugir do que
o poeta chama de "arremedo de tatibitate". Nesse aspecto, o poema "Res Cogitans"
pode ser visto como outra forma de olhar o problema da criação poética e as
distâncias entre o que pensa e o que realmente diz o criador de poesia, colocado
no meio de uma "paródia de labirinto".
Para não mostrar apenas o poeta preocupado com a própria oficina, o terceiro
poema ao lado, "Fábula para Anfíbios", é uma incursão no universo infantil, com
direito a ciclones, dragões e porta-aviões prestes a invadir a geladeira.
Além de ensaísta, editor de livros e organizador de eventos literários, Reynaldo
Damazio, em parceria com o designer Ricardo Botelho, é o criador do site Weblivros, que publica
resenhas, ensaios, entrevistas e acompanha as novidades no mundo dos livros.
Damazio também edita um fanzine chamado Zinequanon, dedicado à divulgação
de poesia e contos.
Um abraço,
Carlos Machado
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Penso, logo minto
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Reynaldo Damazio |
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TREZE
As lâminas da língua
talham balelas na pele-página
o corte agudo, exato, não
deixa cicatriz, mas tatuagens
que se movem ao revés
nas rugas da linguagem
o corpo escravo da fala
se verga, esgástulo, desapruma
e o verbo esgrima com a
víscera, infecundo de
tempo, espaço, gesto:
frase ou mera mímica?
anêmica a palavra míngua
à revelia do sentido
sem norte, ensimesmada,
arremedo de tatibitate,
ora engodo, ora miasma,
lance de dados viciados
rouca ou farpa a voz
perde o fio da meada
e adentra a selva obscura,
coisa mental no branco imenso
língua e voz, confrontadas,
se renegam. Ennui.
RES COGITANS
Penso, logo minto.
No que vejo, incerto,
reside o infinito,
pesadelo sem objeto.
E se afino o tato,
mesmo sem afinco,
o real me escapa,
paródia de labirinto.
Atônito entre nomes
e números, imagens
que me consomem,
sei que esta margem,
sua textura informa,
traduz outra paisagem.
FÁBULA PARA ANFÍBIOS
Para Nícolas e Aléxis
o menino menor trouxe na mão o ciclone
o maior, o dragão afônico
ambos queriam um cometa que levasse a princesa
ao nocaute
ora, não sei cantar estrelas
embora adivinhe a partitura
o menino maior ensina
a construção de sistemas paraconsistentes
com bolas de ping-pong
o menor desmancha cidades e
esculpe doces de malvavisco
a retórica se desfaz com o dente partido
melhor proteger os olhos de uma grande verdade
que do sol
talvez evitar que o porta-aviões no armário
invadam a geladeira
se não é possível prever a trajetória de uma partícula
então uma bolha possa explicar o conceito de poesia
disse bula, não importa
nenhuma palavra sobrevive ao caos
nem a palavra caos
dois meninos cruzam o arco da desesperança
manobras indecisas na órbita do sorvete
sinais de fenda no tempo, sob o band-aid
todas as partes, gravetos ou conchas, se encaixam
na lógica desse abraço
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