Número 95

São Paulo, quarta-feira, 17 de novembro de 2004 

«Não quero ser simples. / Uma flor não é simples: / é uma flor. E não cede.» (Roberval Pereyr)
 


Alexei Bueno


Caros amigos,


Embora jovem e mais novo que todas as vanguardas, o carioca Alexei Bueno (1963-) decidiu construir uma obra de feição clássica. Se você compulsar a Poesia Reunida de Bueno (Nova Fronteira, 2003), vai constatar que há nela alguns versos livres, mas o que dá o tom de toda a obra são sonetos e outros poemas de forma fixa, bem rimados e metrificados.

Além disso, o poeta faz freqüentes referências a temas ou personagens da antiguidade grega. Um de seus livros chama-se Poemas Gregos. Outro tem por título Lucernário. Desse modo, seu trabalho adquire características únicas, diferenciadas de todas as vertentes da poesia brasileira desde o modernismo.

Avesso declarado ao que  chama de "neofilia das vanguardas", Bueno é celebrado por parte da crítica como um poeta que pratica um tipo de modernidade "além das delimitações históricas" (Miguel Sanches Neto).

Os poemas ao lado são parte de uma seleção que me foi gentilmente sugerida pelo próprio poeta. Eles representam uma boa amostra do trabalho que faz de Alexei Bueno um clássico em tempos pós-modernos.

Carlos Machado

 

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Um clássico pós-moderno

Alexei Bueno

 



HISTÓRIA

Não é minha esta casa, aí entrarei no entanto.
Quebrarei o portão, marcharei entre as flores,
Encherei meu pulmão com os estranhos odores
Do jardim adubado a sêmen, sangue e pranto.

Porei a porta abaixo, enfrentarei o espanto
Dos vultos me fitando; e apesar dos bolores
Envergarei sem medo os trajes de idas cores,
Nas suas mãos beberei, entoarei seu canto!

Com os corpos rolarei de milhões de mulheres
Sem corpo. Ei-los que já me saúdam e me
                                                      [ aclamam,
Meus perdidos avós, desamparados seres.

Estendem-me suas mãos como a um filho que os
                                                      [ salva.
Deles vim, mas é a mim que eles agora clamam
A vida, como a um pai, um sol sonhando na alva.

                                                                               27/05/1992

                         De Lucernário (1993)


HELENA

No cômodo onde Menelau vivera
Bateram. Nada. Helena estava morta.
A última aia a entrar fechou a porta,
Levavam linho, ungüento, âmbar e cera.

Noventa e sete anos. Suas pernas
Eram dois secos galhos recurvados.
Seus seios até o umbigo desdobrados
Cobriam-lhe três hérnias bem externas.

Na boca sem um dente os lábios frouxos
Murchavam, ralo pêlo lhe cobria
O sexo que de perto parecia
Um pergaminho antigo de tons roxos.

Maquiaram-lhe as pálpebras vincadas,
Compuseram seus ossos quebradiços,
Deram-lhe à boca uns rubores postiços,
Envolveram-na em faixas perfumadas.

Então chamas onívoras tragaram
A carne que cindiu tantas vontades.
Quando sua sombra idosa entrou no Hades
As sombras dos heróis todas choraram.

                         De Lucernário (1993)


PRODÍGIO

Oh flor, oh muro,
Vós ambos sois.
Ser, este é, pois,
O liame obscuro

Que há em vós. O puro
Elo. Depois,
Se se erguem sóis,
Se se alça o escuro,

Que importa? Estais,
Seiva, argamassa,
Aqui. Jamais

Sereis mais que isto
Que é, que não passa.
Oculto e visto.

                         De Em Sonho (1999)


VIDÊNCIA

Se os nossos olhos te enxergassem, rosa,
E não só: “É uma rosa” nos dissessem
Na vulgar gradação que nunca esquecem,
Que epifania na manhã tediosa!

Se eles vissem, ao vê-la, cada coisa
E não seu nome, se afinal pudessem
Fugir da furna abstrata onde destecem
A vida, um morto partiria a lousa

Maciça de aqui estar. Flor, nuvem, muro,
Árvore, que é uma só e não tal nome,
Se tudo entrasse o corredor escuro

Que há em nós, algo de exato se ergueria,
Algo que pára o tempo ou que o consome,
Que alveja a noite e entenebrece o dia.

                         De Em Sonho (1999)


PERGUNTA

Será realmente a face do Universo
A face da Medusa,
Esta geral destruição confusa,
Este criar perverso,

Ou será a máscara, álgida e estrelada,
Onde os cometas passam,
Turva de treva, rútila de nada,
E onde olhos se espedaçam?

                         De Lucernário (1993)
 

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Carlos Machado, 2004

Alexei Bueno
In Poesia Reunida
Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2003