Chantal Castelli
Caros amigos,
Quem lê os textos da jovem poeta paulistana Chantal Castelli logo percebe que
ela tem — e cultiva — uma capacidade especial de observar e transfigurar
miudezas do cotidiano. Essa característica aparece tanto em seu primeiro livro (Memória
Prévia, publicado em 2000) como em inéditos mais recentes que tive a
oportunidade de ler.
Pelo menos na poesia que escreveu até agora, não se espere de Chantal o verso
enfático com a celebração de idéias altissonantes ou de incêndios da paixão.
Seus poemas falam baixo. O andamento é milimétrico, e as sensações vêm contidas,
precisas, pinçadas sem alarde. Estão ali, no chão, no muro, nos registros de
água e luz, ou podem ser vistas pela janela da memória.
Essa capacidade de flagrar "flores mínimas, resumo de conversas na cozinha" está
no primeiro poema ao lado, "Constelação". Além de ter dado à autora o título de
seu livro — "tento recompor/ a memória prévia" —, esse poema revela dois outros
aspectos. Primeiro, a dedicatória a Carlos Drummond de Andrade mostra uma das
influências da autora. Depois, sugere uma profissão de fé implícita.
Em "Revelação" surge outra faceta de Chantal, que também é fotógrafa de fina
sensibilidade. Aí o que prevalece é o olho da artista que fixa a poesia das
imagens. Nesse "retrato impossível" também se notam ecos de Drummond, como em
"apenas a idéia viajando na carne". O olhar fotográfico aparece ainda no poema
seguinte, sem título, onde salta um "esboço de luz / saudando o entendimento /
de nossos corpos".
O último poema ao lado, o inédito e recente "Mapa", é dedicado à poeta americana
Elizabeth Bishop (1911-1979). Nele, as miuçalhas do cotidiano ainda dão o
tom, associados a lances biográficos da escritora homenageada. Mas nesse texto,
assim como nos outros da mesma fornada, Chantal parece encontrar um modo poético
mais pessoal, já livre de influências facilmente identificáveis.
Além de poeta e fotógrafa, Chantal Castelli é professora de literatura e
ensaísta. Com o ensaio "Espaço e Memória em Boitempo", participou do livro
Drummond Revisitado (Unimarco, 2002), que reúne análises de vários autores
sobre a obra do poeta itabirano.
Um abraço,
Carlos Machado
•
•
•
poesia.net – 2 anos
Quero agradecer às dezenas de leitores que me enviaram mensagens pelos dois anos
deste boletim.
Aproveito para desejar a todos um excelente final
de ano e um 2005 repleto de (boa) poesia. |
Na janela da memória
|
Chantal Castelli |
|
CONSTELAÇÃO
Para Carlos Drummond de Andrade
Tento recompor
as paredes de louça,
a porta da rua apodrecendo,
os tijolos aparentes
no muro onde dois registros
—
água e luz
—
saltavam, dois olhos
de vidro opaco.
Contemplo-os agora
na janela da memória
—
ou serão também espelho,
reflexo de mim mesmo?
A tarde parecia eterna
nos pés do menino junto à horta,
na caixa d'água que era berço e túmulo,
na coleção de cacos e suas flores mínimas,
resumo de conversas na cozinha,
tinidos, subentendidos...
Tento recompor
a memória prévia,
o tempo duplo,
a casa em chiaroscuro,
no papel que
(mesmo querendo)
não posso rasgar.
REVELAÇÃO
Tento decifrar
uma foto que não há:
ao lado da janela meu pai
e eu
e nosso reflexo no vidro
de uma tarde morta.
O retrato impossível me fita,
imagem-lembrança de desejo,
provando mudo
que o que resta
não é jamais o uso
dos melhores sonhos,
mas apenas a idéia
viajando na carne:
os pés sobre os quais não dancei,
a mão que não retive,
os lábios que não marcaram minha face.
Somente o olhar
espiritual-imperfeito
alcança-me agora
dessa tarde morta
e sem registro.
(SEM TÍTULO)
Não um poema
que descrevesse o desenho
de tua mão
procurando-me esta manhã;
sendo que é
de impalpável fibra
esse aceno.
Mas um poema
que soubesse dizer
ao menos da perfeita mudez
dessa hora, do primeiro
esboço de luz
saudando o entendimento
de nossos corpos.
MAPA
Para Elizabeth Bishop
A boneca velha imunda
não serve à viagem de trem
mas o silêncio aflito
os ruídos pequenos de cão triste
e o vômito amarelo
de sua doença pela manhã.
A menina e a avó tardia
trocam bolachas água e sal
medem silêncios
sob o trecho empoeirado
de sol na cabine.
Até lá
as meias, do avesso
esconderão a sujeira
de rata do campo
agora metida em trajes marrons
lições de tricô.
Até saber-se
nem árvore
nem cão
nem outra pessoa qualquer
na sala de espera
de um consultório dentário.
|