Paulo Mendes Campos
Caros amigos,
Poeta, cronista, tradutor, o mineiro Paulo Mendes Campos (1922-1991) é conhecido
principalmente pelas suas crônicas — gênero que cultivou com maestria durante
décadas. Outro aspecto que destacava Mendes Campos era sua participação no
célebre quarteto de amigos-escritores formado por Hélio Pellegrino (1924-1988),
Otto Lara Resende (1922-1992) e Fernando Sabino (1923-2004). Todos
mineiros, os membros desse grupo tornaram-se conhecidos no Rio. Dos quatro,
Paulo Mendes Campos foi o último a se transferir para a então capital federal,
em 1945.
Para este último boletim do ano, escolhi como texto de abertura o poema
"Pesquisa", uma bonita reflexão sobre a passagem do tempo. Em tom elegíaco, este
é um poema antológico. Apenas os cinco primeiros versos já o justificam como
obra de arte.
O segundo texto são excertos de um poema longo, "Copacabana 1945". Aqui, o tom
não é mais de elegia. Com um misto de humor e perplexidade, o poeta — talvez já
com o olhar de cronista — observa a vida metropolitana e sua rápida sucessão de
dramas, falsos e verdadeiros.
O terceiro poema, "Infância", é considerado por muitos a obra-prima de Paulo
Mendes Campos. São versos ao mesmo tempo densos e ternos, evocativos e cheios de
reflexão. É um poema para ser degustado devagar, em pequenos goles, como vinho
da melhor safra.
Um abraço,
Carlos Machado
poesia.net entra
em recesso
A todos os leitores do poesia.net desejo um ano novo
com muita saúde, paz e poesia.
Durante o mês de janeiro, o boletim não circulará. Espero
retornar em fevereiro para nosso encontro semanal.
FELIZ 2005!
|
|
Vibrações de tempo
|
Paulo Mendes Campos |
|
PESQUISA
Tempo é espaço interior. Espaço é tempo exterior.
Novalis
A gaivota determinada mergulha na água
Verde. Há um tempo para o peixe
E um tempo para o pássaro
E dentro e fora do homem
Um tempo eterno de solidão.
Muitas vezes, fixando o meu olhar no morto,
Vi espaços claros, bosques, igapós,
O sumidouro de um tempo subterrâneo
(Patético, mesmo às almas menos presentes)
Vi, como se vê de um avião,
Cidades conjugadas pelo sopro do homem,
A estrada amarela, o rio barrento e torturado,
Tudo tempos de homem, vibrações de tempo,
[ vertigens.
Senti o hálito do tempo doando melancolia
Aos que envelhecem no escuro das boîtes,
Vi máscaras tendidas para o copo e para
[ o tempo.
Com uma tensão de nervos feridos
E corações espedaçados.
Se acordamos, e ainda não é madrugada,
Sentimos o invisível fender do silêncio,
Um tempo que se ergue ríspido na escuridão.
Cascos leves de cavalos cruzam a aurora.
O tempo goteja
Como o sangue.
Os cães discursam nos quintais, e o vento,
Grande cão infeliz,
Investe contra a sombra.
O tempo é audível; também se pode ouvir a
[ eternidade.
COPACABANA 1945
(excertos)
I
As fichas finais do jogo
foram recolhidas; fecha-se
o cassino; abre-se em fogo
o coração que devora.
Vejo em vez de eternidade
no relógio minha hora.
E se quiser vejo a tua.
Às cinco tinhas encontro
num cotovelo de rua.
As cigarras do verão
tiniam quando sugavas
teu uísque com sifão.
Às onze no Wunder Bar
por meio acaso encontravas
a mulher que anda no ar.
Às três em Copacabana
uma torpeza uterina
pestana contra pestana.
As quatro e pouco saías,
comias um boi às cinco,
às seis e meia morrias.
Às duas ressuscitavas,
às cinco tinhas encontro,
às sete continuavas.
II
A mensagem abortada
de Copacabana perde-se
na viração: não é nada.
Morre um homem na polícia.
Tantos casos. Não é nada:
os jornais dão a notícia.
Uma criança que come
restos na lata de lixo
não é nada: mata a fome.
Não é nada. A favela
pega fogo. Não é nada:
faz-se um samba para ela.
Um moço mata a família
e se mata. Não é nada:
poupa o drama à tua filha.
Uma menina estuprada.
Uma virgem cai do céu.
Nada. Copacabanada.
VI
Copacabana, golfão
sexual: soma dois corpos
mas divide solidão.
VII
Pelas piscinas suspensas,
pelas gargantas dos galos,
pelas navalhas intensas,
pelas tardes comovidas,
pelos tamborins noturnos,
pelas pensões abatidas,
eu vou por onde vou; vou
pelas esquinas da treva:
Copacabana acabou.
INFÂNCIA
Há muito, arquiteturas corrompidas,
Frustrados amarelos e o carmim
De altas flores à noite se inclinaram
Sobre o peixe cego de um jardim.
Velavam o luar da madrugada
Os panos do varal dependurados;
Usávamos mordaças de metal
Mas os lábios se abriam se beijados.
Coados em noturna claridade,
Na copa, os utensílios da cozinha
Falavam duas vidas diferentes,
Separando da vossa a vida minha.
Meu pai tinha um cavalo e um chicote;
No quintal dava pedra e tangerina;
A noite devolvia o caçador
Com a perna de pau, a carabina.
Doou-me a pedra um dia o seu suplício.
A carapaça dos besouros era dura
Como a vida — contradição poética —
Quando os assassinava por ternura.
Um homem é, primeiro, o pranto, o sal,
O mal, o fel, o sol, o mar — o homem.
Só depois surge a sua infância-texto,
Explicação das aves que o comem.
Só depois antes aparece ao homem.
A morte é antes, feroz lembrança
Do que aconteceu, e nada mais
Aconteceu; o resto é esperança.
O que comigo se passou e passa
É pena que ninguém nunca o explique:
Caminhos de mim para mim, silvados,
Sarçais em que se perde o verde Henrique.
Há comigo, sem dúvida, a aurora,
Alba sangüínea, menstruada aurora,
Marchetada de musgo umedecido,
Fauna e flora, flor e hora, passiflora,
Espaço afeito a meu cansaço, fonte,
Fonte, consoladora dos aflitos,
Rainha do céu, torre de marfim,
Vinho dos bêbados, altar do mito.
Certeza nenhuma tive muitos anos,
Nem mesmo a de ser sonho de uma cova,
Senão de que das trevas correria
O sangue fresco de uma aurora nova.
Reparte-nos o sol em fantasias
Mas à noite é a alma arrebatada.
A madrugada une corpo e alma
Como o amante unido à sua amada.
O melhor texto li naquele tempo,
Nas paredes, nas pedras, nas pastagens,
No azul do azul lavado pela chuva,
No grito das grutas, na luz do aquário,
No claro-azul desenho das ramagens,
Nas hortaliças do quintal molhado
(Onde também floria a rosa brava)
No topázio do gato, no be-bop
Do pato, na romã banal, na trava
Do caju, no batuque do gambá,
No sol-com-chuva, já quando a manhã
Ia lavar a boca no riacho.
Tudo é ritmo na infância, tudo é riso,
Quando pode ser onde, onde é quando.
A besta era serena e atendia
Pelo suave nome de Suzana.
Em nossa mão à tarde ela comia
O sal e a palha da ternura humana.
O cavalo Joaquim era vermelho
Com duas rosas brancas no abdômen;
À noite o vi comer um girassol;
Era um cavalo estranho feito um homem.
Tínhamos pombas que traziam tardes
Meigas quando voltavam aos pombais;
Voaram para a morte as pombas frágeis
E as tardes não voltaram nunca mais.
Sorria à toa quando o horizonte
Estrangulava o grito do socó
Que procurava a fêmea na campina.
Que vida a minha vida! E ria só.
Que âncora poderosa carregamos
Em nossa noite cega atribulada!
Que força do destino tem a carne
Feita de estrelas turvas e de nada!
Sou restos de um menino que passou.
Sou rastos erradios num caminho
Que não segue, nem volta, que circunda
A escuridão como os braços de um moinho.
|