Francisco Carvalho
Caros amigos,
O poeta cearense Francisco Carvalho (1927-) é mais um daqueles casos de talentos
literários que florescem totalmente recolhidos ao silêncio. Embora tenha
publicado quase trinta livros de poesia (estreou em 1955, com Cristal da
Memória), poucos conhecem sua obra. Nem mesmo sua escolha como vencedor do
Prêmio Nestlé, em 1982, foi capaz de tirar da obscuridade o excelente trabalho
do poeta.
No ano passado, os jornais cearenses deram destaque ao nome de Francisco
Carvalho. Primeiro, porque o cantor e compositor Fagner, conterrâneo do poeta,
musicou cinco poemas dele e incluiu as canções no CD Os Donos do Brasil.
Depois, porque saiu o livro Memórias do Espantalho – Poemas Escolhidos,
uma antologia de Francisco Carvalho, com 500 páginas. Mas não comemore ainda.
Não pense que agora ficou fácil ter em sua estante a obra do poeta. Publicado
pela Universidade Federal do Ceará em pequena tiragem, o livro já está esgotado.
Paciência.
Passemos à poesia. Os textos ao lado foram extraídos de Quadrante Solar,
volume publicado pelo Prêmio Nestlé em 1982. Tenho consciência de que essa
seleção certamente não representa toda a diversidade do trabalho do poeta. Isso
deve ser dito, ainda mais quando se sabe que ele, muito cuidadoso, reescreveu ou
retocou boa parte dos textos incluídos em Memórias do Espantalho. Além
disso, baniu dessa antologia as obras dos quatro primeiros livros.
Não é fácil conseguir uma foto de Francisco Carvalho (discreto, ele não gosta de
dar entrevistas nem de se deixar fotografar). A imagem mostrada aí em cima
apareceu no jornal O Povo, de Fortaleza, quando o disco de Fagner
levantou poeira em torno do poeta. O último poema é inédito em livro. Foi
transcrito pelo escritor Paulo de Tarso Pardal, também em artigo para O Povo.
O lirismo de Francisco Carvalho está presente em cada um desses poemas. Ele
trafega com igual desenvoltura no verso livre e nos poemas de forma fixa, como o
"Soneto XI". Observe-se que tanto "Burocracia", dado à luz em 1982, como "Os
mísseis e os omissos", o poema inédito, são perpassados por uma ironia doída e
que faz doer. A idéia dos mísseis também é recorrente e já fora visitada em
"Telejornal".
Embora a poesia de Francisco Carvalho contemple "o sol das ilusões antigas", ele
não separa o sonho do suor. Para ele, é no barro que está a inocência perdida. E
os animais que pastam na eternidade também estão diante das "papoulas de arame
dos cercados". Carvalho faz uma poesia que sabe voar e tem os pés no chão. Uma
poesia viva. Forte. Necessária.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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O QUE É, HOJE, A POESIA BRASILEIRA?
Para marcar o retorno do boletim neste início de ano, confira no site Ave,
Palavra um assunto polêmico: a quantas anda a poesia brasileira
contemporânea. As opiniões são bem diversas. Juntamos uma série delas
disponíveis na internet. Veja-as no site, na seção
Outras Palavras.
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MAIS FRANCISCO CARVALHO
Veja mais poemas de Francisco Carvalho nos boletins:
- poesia.net 212
- poesia.net 287
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Papoulas de arame
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Francisco Carvalho |
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BUROCRACIA
Eles te advertem que a aurora foi abolida
por tempo indeterminado.
Eles te comunicam que o trigo e o vento
vão ser exportados para o arco-íris.
Eles te aconselham a esquecer
o corpo ensangüentado dos acontecimentos.
Eles te ensinam que o orvalho não cai
sobre aqueles que semeiam dúvidas.
Eles te mandam esvaziar as palavras
de toda a possível reminiscência.
Eles te fiscalizam do alto dos edifícios
escanchados nalgum dragão lunar.
Eles te dão um ataúde azul
e te ordenam que é tempo de morrer.
POEMA DO RETORNO
a terra cobra
o que do homem
nada sobra
cobra o ouro
cobra a prata
cobra o cobre
cobra o vento
cobra o evento
cobra o invento
cobra o osso
cobra a carne
cobra o remorso.
cobra o sonho
cobra a raiva
cobra a calva.
cobra o cio
cobra o aço
cobra o ócio.
cobra a escória
cobra a cárie
cobra a memória.
cobra o modo
cobra o medo
cobra o arremedo.
cobra a febre
cobra a fibra
cobra a vida.
BARRO
O barro é a palavra
que te devolve a inocência perdida
o teu passaporte para a criatura.
O teu modo de dizer o que as pessoas
não te disseram nunca.
O barro é a matéria do teu canto
o ouro de tua botija
o amálgama de tua cárie
o salário do teu anonimato
teu sortilégio e tua perdição.
O barro é teu sangue coagulado que teima em
[ protestar
o teu mistério se consumindo
o teu sapato estraçalhado na diáspora
o teu chapéu de luto
a tua solidão de olhos fitos na vida.
TELEJORNAL
Um míssil corta o assombro
dos anjos a cavalo.
Corta a luminosa
metade do centauro.
Uma bomba explodiu
numa aldeia asiática.
Vozes ensangüentadas
relampejam no céu.
Sinto cheiro de pólvora.
Maldito cheiro da morte.
Sinto medo ao protesto
dos defuntos atômicos.
Um míssil corta a nuvem
com seu fulgor maligno.
Os anjos pegam fogo
besta do apocalipse.
SONETO XI
Quando chegar o tempo do plantio
quero enterrar meu sonho nesta gleba.
Meu sonho e estas visões carbonizadas
pelos ventos peludos desse estio.
Aqui verei meus mortos despertados
pelo nitrir fogoso da alimária.
A ovelha e o boi pastando a eternidade
e as papoulas de arame dos cercados.
Quero enterrar meu sonho e meu suor
nesta gleba adoçada de formigas
onde a aranha teceu seu devaneio.
Aqui virão as cabras do pastor
balir ao sol das ilusões antigas.
Pastar canções e espigas de centeio.
OS MÍSSEIS E OS OMISSOS
Os mísseis convivem conosco
em cada fragmento do nosso corpo.
Diz o grego que as flechas de Ulisses
não se bifurcam com as rotas dos mísseis.
Em noites de espumas e barbatanas
os mísseis contemporâneos das ratazanas.
Vou à feira comprar repolho:
um míssil explode dentro do meu olho.
Namorados que vão para Ipanema
levam flocos de mísseis para o cinema.
Os homens de prol, os burocratas
e omissos são mísseis que usam gravata.
Mísseis nos jatos e nos navios
que naufragaram. Mísseis nos rios
onde se leva o hímen das noivas
o enxoval de bordados e outras coisas.
Na hora da ceia ou do brinde
um míssil de ópio acende o cachimbo.
Mísseis teleguiados por gringos
explodem no céu, aos sábados e domingos.
Raia a madrugada nupcial dos gatos.
Os mísseis põem seus ovos nos retratos.
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