Número 103 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 9 de fevereiro de 2005

«Só a palavra vista por dentro/ traz algum proveito. » (Edimilson de Almeida Pereira)
 


Danilo Monteiro


Caros amigos,


Os poetas veteranos que carregam a bandeira do surrealismo às vezes choram de barriga cheia. Boa parte dos jovens poetas com quem tenho tido contato bebe em águas surreais. Exemplo disso é o paulistano Danilo Monteiro, nascido em 1974.

Inserida na paisagem urbana, a poesia de Monteiro tem muitos pontos de contato com a estética surrealista. Isso pode ser constatado em seu livro de estréia, Hoje Outro Nome Tem a Chuva (Azougue Editorial, 2004). 


É claro que o trabalho de Danilo Monteiro não se caracteriza por um surrealismo puro. Ele também se aproxima de outras vertentes poéticas, como o coloquialismo da poesia marginal dos anos 70. Bem, esse é um problema de classificação. Tudo isso que eu disse pode estar errado. Mas a gente só consegue entender as coisas tentando assimilá-las ao que já conhece, catalogando-as numa prateleira conhecida.


Alguns aspectos podem ser ressaltados no trabalho de Danilo Monteiro. Ele transita à vontade entre o verso livre e a prosa poética. Por isso selecionei aqui dois textos em prosa. Também merece destaque a preferência de Danilo pelo não-título. O que identifica os poemas são o destaque dado ao primeiro verso ou ao primeiro período do texto.

Para o escritor Bruno Zeni, que assina o posfácio de Hoje Outro Nome Tem a Chuva, "as composições de Danilo Monteiro sublinham a excepcionalidade da vida simples e, simultaneamente, a dimensão comunitária, cotidiana e acessível do sagrado."

Dublê de poeta e músico, Danilo Monteiro,  também promove shows de música e poesia na periferia de São Paulo.


Carlos Machado

 

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O outro nome da chuva

Danilo Monteiro

 



Certos trabalhos exigem desembaraço

Por exemplo: quando uma maritaca caminha por
           um galho para comer flores amarelas
ela não pode paralisar-se com o encantamento
                                                        [disso
pensar numa lista de agradecimentos
ou negar-se à singeleza

Ou então: uma árvore tem muitos segredos porque
                                                       [ vive
           do céu e do subterrâneo
é palco de circunstâncias exageradamente felizes
principalmente de si mesma
ela não se atrapalha com isso
mas eu sim
um pouco


O mangustão é uma fruta de casca dura. A gente abre pelo meio com uma faca para chegar à polpa, que espera lá dentro branca e mole e suculenta como uma noiva. A casca dura, agora aberta pelo meio, parece uma caixinha de jóias. Mas o que guardar lá dentro, se o bem da polpa é não permanecer? Eu fico com esta caixinha de jóias na mão, sem saber o que guardar.


Eis a água que move a roda:
tenho sede de minha sede.

Esta é a água que se torna luz:
e as vezes desejo arrancar os olhos.


Desculpa esse mau jeito
de não te fazer poema
e uma guria louca por amoras tem freqüentado
este quarto
cuja janela incomoda tua copa
e é primavera e tudo o mais
eu não me ligo muito nisso de nomes de
                                             [ passarinhos

Mas quando o sol vinha pelo teu lado direito
no fim do dia
e as e crianças aqui do prédio com dedos
manchados de vermelho
ah, eu sei, bem que sei
Mas as árvores não têm lados



primeiro por dentro dos ossos
o tremor que antecede o extinguir da vela
depois o vendaval
vem esculpir com granizo
meu rosto



                                                 Ao universo pertence aquele que
                                                                      participa da dança.

                                             (do Evangelho Gnóstico de São João)

Ferido pela rosa e não pelo espinho, feito abelha que se atira ao lago agora flutuo nas ondulações de um choque, olhos desfocados para proteger o ventre de outros jardins; porque obviamente não era abelha, mas eu mesmo; porque não era rosa, mas caveira tatuada no tornozelo ("comigo é só o terror, neguinho"), e não era espinho mas cachos; porque não era caveira mas talvez a música, e não me feriam as garrafas rolando no chão da pista.
 

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Carlos Machado, 2005

Danilo Monteiro
In Hoje Outro Nome Tem a Chuva
Azougue Editorial, Rio de Janeiro, 2004