Danilo Monteiro
Caros amigos,
Os poetas veteranos que carregam a bandeira do surrealismo às vezes choram de
barriga cheia. Boa parte dos jovens poetas com quem tenho tido contato bebe em
águas surreais. Exemplo disso é o paulistano Danilo Monteiro, nascido em 1974.
Inserida na paisagem urbana, a poesia de Monteiro tem muitos pontos de contato
com a estética surrealista. Isso pode ser constatado em seu livro de estréia,
Hoje Outro Nome Tem a Chuva (Azougue Editorial, 2004).
É claro que o trabalho de Danilo Monteiro não se caracteriza por um surrealismo
puro. Ele também se aproxima de outras vertentes poéticas, como o coloquialismo
da poesia marginal dos anos 70. Bem, esse é um problema de classificação. Tudo
isso que eu disse pode estar errado. Mas a gente só consegue entender as coisas
tentando assimilá-las ao que já conhece, catalogando-as numa prateleira
conhecida.
Alguns aspectos podem ser ressaltados no trabalho de Danilo Monteiro. Ele
transita à vontade entre o verso livre e a prosa poética. Por isso selecionei
aqui dois textos em prosa. Também merece destaque a preferência de Danilo pelo
não-título. O que identifica os poemas são o destaque dado ao primeiro verso ou
ao primeiro período do texto.
Para o escritor Bruno Zeni, que assina o posfácio de Hoje Outro Nome Tem a
Chuva, "as composições de Danilo Monteiro sublinham a excepcionalidade da
vida simples e, simultaneamente, a dimensão comunitária, cotidiana e acessível
do sagrado."
Dublê de poeta e músico, Danilo Monteiro, também promove shows de música e
poesia na periferia de São Paulo.
Carlos Machado
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ASSINANTES DO iG
Um dia depois de circular a última edição do poesia.net, recebi de volta
os boletins enviados a assinantes do iG. Não sei se todos foram devolvidos, mas
o problema certamente atingiu a maioria. Se você não recebeu o boletim n. 102,
que destaca o poeta cearense Francisco Carvalho, leia-o na web
clicando aqui.
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O outro nome da chuva
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Danilo Monteiro |
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Certos trabalhos exigem desembaraço
Por exemplo: quando uma maritaca caminha por
um galho para comer
flores amarelas
ela não pode paralisar-se com o encantamento
[disso
pensar numa lista de agradecimentos
ou negar-se à singeleza
Ou então: uma árvore tem muitos segredos porque
[ vive
do céu e do
subterrâneo
é palco de circunstâncias exageradamente felizes
principalmente de si mesma
ela não se atrapalha com isso
mas eu sim
um pouco
O mangustão é uma fruta de casca dura.
A gente abre pelo meio com uma faca para chegar à polpa, que espera lá dentro
branca e mole e suculenta como uma noiva. A casca dura, agora aberta pelo meio,
parece uma caixinha de jóias. Mas o que guardar lá dentro, se o bem da polpa é
não permanecer? Eu fico com esta caixinha de jóias na mão, sem saber o que
guardar.
Eis a água que move a roda:
tenho sede de minha sede.
Esta é a água que se torna luz:
e as vezes desejo arrancar os olhos.
Desculpa esse mau jeito
de não te fazer poema
e uma guria louca por amoras tem freqüentado
este quarto
cuja janela incomoda tua copa
e é primavera e tudo o mais
eu não me ligo muito nisso de nomes de
[ passarinhos
Mas quando o sol vinha pelo teu lado direito
no fim do dia
e as e crianças aqui do prédio com dedos
manchados de vermelho
ah, eu sei, bem que sei
Mas as árvores não têm lados
primeiro por dentro dos ossos
o tremor que antecede o extinguir da
vela
depois o vendaval
vem esculpir com granizo
meu rosto
Ao universo pertence aquele que
participa da dança.
(do Evangelho Gnóstico de São João)
Ferido pela rosa e não pelo espinho,
feito abelha que se atira ao lago agora flutuo nas ondulações de um choque,
olhos desfocados para proteger o ventre de outros jardins; porque obviamente não
era abelha, mas eu mesmo; porque não era rosa, mas caveira tatuada no tornozelo
("comigo é só o terror, neguinho"), e não era espinho mas cachos; porque não era
caveira mas talvez a música, e não me feriam as garrafas rolando no chão da
pista.
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