Número 104 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 16 de fevereiro de 2005

«Mas há nesta lua cheia/ dentro da noite vazia/ um violão que ponteia/ na memória e silencia.» (José Chagas)
 


Izacyl Guimarães Ferreira


Caros amigos,

Dono de vasta e elogiada obra, o carioca Izacyl Guimarães Ferreira (1930-) é o que se
pode chamar de cavaleiro andante da poesia. Além de escrever seus próprios versos, ele traduz, comenta e divulga trabalhos de outros poetas. Estreante em 1950 com o livro Os Endereços, ele vem mantendo produção regular ao longo de mais de cinco décadas.

Em 1980, reuniu no volume Os Fatos Fictícios toda a obra anterior e alguns títulos
novos. De lá para cá, publicou quase uma dezena de outros livros, entre os quais
Memória da Guerra, surgido em 1991 e ampliado em 2002.

Para esta edição do poesia.net, escolhi somente poemas desse livro de Izacyl Guimarães
Ferreira. Eu já havia escolhido uma série de poemas extraídos de outros livros. Mas, ao descobrir esse, achei-o terrivelmente expressivo e atual. Então, resolvi concentrar nele este boletim.

Escrito como um projeto poético, Memória da Guerra reflete sobre a insanidade dos conflitos armados — os atuais e os de sempre. A parte inicial do livro foi escrita sob o impacto da primeira Guerra do Golfo, aquela que vendeu a idéia dos "ataques cirúrgicos" e transformou os confrontos militares em espetáculos de TV. Não por acaso, um dos poemas do volume se abre com os  seguintes versos:

Caros telespectadores,
a guerra vai começar.


Ao compor esse volume de guerra, o poeta lançou mão de um variado arsenal de recursos criativos para tratar de tópicos que vão desde os artefatos mortíferos até o impacto das notícias sobre as pessoas; do medo do combatente na trincheira até as fileiras de placas com nomes e datas de soldados mortos em combate.
Como divulgador, Izacyl Guimarães escreve com freqüência artigos para publicações de papel ou da web. 



MEMÓRIA DA GUERRA

Deixei para o fim o melhor da festa: como um presente do poeta Izacyl Guimarães Ferreira aos leitores do poesia.net, você pode ler na web o livro Memória da Guerra, completo, em formato PDF. Para isso, clique no nome do livro, acima. A leitura de arquivos PDF, no entanto, só é possível com o programa
Adobe Reader (que é gratuito), ou outro compatível. Clique no nome do produto para baixá-lo.

Um abraço,

Carlos Machado

 

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MAIS IZACYL FERREIRA

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Memória da guerra

Izacyl Guimarães Ferreira

 



GUERREIROS

não vês as mesmas coisas
              como eu as vejo
não tens as mesmas crenças
              as mesmas lendas
              as mesmas leis
não és o mesmo que eu

é outra a roupa que me veste
é outra a cor de minha pele

eu falo eu canto eu rezo
em outra língua

em outra língua
eu amo e choro e calo

a outro deus
eu devo a minha vida

por esse deus
te levo a morte



CAMPO DE BATALHA

onde a trilha da patrulha
onde ela pára

onde a fagulha na palha
onde ela estala

onde rilha a matilha da metralha
onde a ira de abelha da metralha
onde ela atira

onde brilha a centelha da fornalha
onde a pira vermelha da fornalha
onde ela fira

onde há limalha
onde se engelha

onde se empilha
        o restolho
        o entulho



OPINIÃO PÚBLICA

25% querem
25% não querem
25% não sabem
25% não querem saber

33,33% têm medo
33,33% não têm medo
33,33% emudeceram

36,4% acreditam em parte
33,7% não acreditam em nada
29,4% querem acreditar em algo
23,2% são absolutamente céticos
28,6% são absolutamente crédulos
39,5% dão respostas múltiplas desesperadas

38% já foram antes
32% nunca foram
19% não se lembram como era
24% ainda não se esqueceram
47% não faziam a menor idéia
76% ficaram perplexos

X % estão certos
Y % estão fartos
N % estão mortos



RECRUTAS

Dizem quase nada
os nomes e as datas
nesses granitos.

Diriam menos
os poemas
dos grafitos.

Não entendíamos
seus mitos.

Nunca ouviríamos.
Nem mesmo os gritos.



AS POMPAS E AS CIRCUNSTÂNCIAS

onde estão
os tambores cavando?
o infinito clarim,
onde grita?
onde os comandos, onde
as salvas de festim?
esses sons consolando,
esses sons onde estão?

onde
os que há pouco passavam
sob o sol marcial?

— a marcha densa, a guarda
luzindo em alamares,
talabartes, medalhas
na flanela de gala
(nas cabeças de estátua
a pala cobre os olhos
mas revela os olhares
meditando encobertos) —

— os cavalos, seus pêlos
penteados, os castos
arreios como elásticos
mantendo sem surpresa
as medidas precisas
do passo, pata em parte
no ar, parte no piso,
leve o tinir dos cascos —

— celebrantes silentes,
espadas e fuzis
das batalhas antigas
paralisando a tarde
nas bandeiras batendo
em lentidão solene,
a surdina encantada
de umas pedras, das árvores —

onde
os que há pouco passavam
sob o sol marcial?

o féretro, o esquife,
os negros ataúdes,
as funerárias urnas,
os múltiplos caixões,
em que tumbas e túmulos,
sepulcros, sepulturas,
sozinhos se despedem,
ausentes se acumulam?

que silêncio os esconde?
que antecipada treva?
que verdade se nega,
que memória se ensombra?

secretos, pessoais,
onde passam agora
os que há pouco passavam
sob o sol mundial?
 

poesia.net
Carlos Machado, 2005

Izacyl Guimarães Ferreira
In Memória da Guerra
Scortecci, 2a. ed. aumentada
São Paulo, 2002