Número 105 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 23 de fevereiro de 2005

«Todos os deuses são hóspedes do sonho.» (Myriam Fraga)
 


André Luiz Pinto


Caros amigos,

O poeta André Luiz Pinto nasceu no Rio de Janeiro, em 1975.
Sua poesia parece ter um pé plantado no surrealismo com versos desfocados do senso comum, ambíguos, às vezes obscuros e desconcertantes. Essa é também a impressão do poeta e crítico Carlito Azevedo, que vê "algo de surrealista nas imagens insólitas" de André Luiz.

De fato é surpreendente associar a lembrança da pessoa amada a "um leão rasgando seda" (veja o poema "Incrível"). Ou, então, conservar um desejo numa "fronha de nuvens" ("Quase um Corpo").

Com três livros publicados — Flor à Margem (1999); Um Brinco de Cetim/Un Pendiente de Satén (2003); e Primeiro de Abril (2004) —, André Luiz tem também poemas em revistas e jornais especializados.

Para este boletim, selecionei poemas de Flor à Margem e de Primeiro de Abril.
Eduardo Guerreiro, que assina o posfácio deste último livro, propõe uma hipótese de leitura segundo a qual a fragmentação e a obscuridade que marcam a poesia de André Luiz Pinto favorecem "uma poderosa experiência da dúvida (...) poética que, ao contrário de Descartes, tem a coragem de duvidar inclusive de si mesma".

Abraço, e até a próxima.

Carlos Machado

 

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Leão rasgando seda

André Luiz Pinto

 


INCRÍVEL

incrível
tua lembrança:

um leão
rasgando seda.

exponho
os pedaços do amor pela cama:

meia dúzia de anátemas; enjôos

(o brinco de cetim)

post-mortem de livro:

sabes, incalculável,
a soma destes viés

(porque somas
mas não soletras).


ONDE ANDO TODOS ME CONHECEM


onde ando todos me conhecem:
— lá vai o homem da flor.
Ninguém sabe dos meus pecados com Deus.
sou um homem para menos.
meu contar escorre ladeira.
Não creio em azar. Não por ser otimista
Por saber que a sorte é rara.
sempre ando pela direita.
todos os livros abrem apócrifos.
sou imagem e semelhança do desacontecido.
A pessoa que procuro não sou eu.



QUASE UM CORPO

Quase um corpo,
armadilha de seu
gesto impossível.

Se a boca revela
raríssimas flores,
o rosto conserva

o passível desejo na
fronha das nuvens,
nesse dia incomum

depois de tantos
crimes, notícias de
jornal, resumindo

com a boca imunda
os tempos de guerra
os dias felizes sem

você, café, qualquer
vício nessa cabeça
de homem, raposa.


[SEM TÍTULO]

Quando foste
— claríssimo não —
a bolsa da pálpebra
trincava geometria,

caíam lavas sobre
o velcro da pele,
braços de fórmica
enquanto amarias

e o que negavas
armavas plano
como um beijo
abjeto da retina.
 

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Carlos Machado, 2005

André Luiz Pinto
• "Onde ando todos me conhecem"; "Incrível"
   In Flor à Margem
  
Edição do autor, Rio de Janeiro, 1999
• "Quase um corpo"; "Sem Título"
   In Primeiro de Abril
  
Editora Hedra, São Paulo, 2004