Número 109 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 23 de março de 2005

«Dançar flamenco é cada vez;/ é fazer; é um faz, nunca um fez.» (João Cabral de Melo Neto)
 


José Inácio Vieira de Melo


Caros amigos,

Alagoano de nascimento, o
poeta José Inácio Vieira de Melo (1968-) é baiano na produção cultural. Editor, produtor de eventos e divulgador de literatura, José Inácio é hoje uma das figuras mais ativas do cenário cultural baiano.

Ele estreou com o livro Códigos do Silêncio (2000) e também publicou os volumes Decifração de Abismos (2002) e Terceira Romaria (2005). Logo na primeira leitura, uma característica se destaca na poesia de José Inácio: o que ele escreve é a transmutação de experiências  vividas.

Seu tema principal é a vida no sertão, ambiente que o autor conhece bem, já que viveu dez anos no campo.  "Conheçamos ou não dados biográficos de José Inácio, fica logo evidente que se trata de um autor nordestino", ressalta o poeta Ruy Espinheira Filho, destacando a aderência dos versos de José Inácio à sua geografia existencial.

Outro traço marcante na poesia de José Inácio Vieira de Melo é, quase sempre, a concretude das imagens — o que talvez também resulte do aprendizado com o sertão. Em "Bodas de Sangue", poema dedicado à dançarina sevilhana Cristina Hoyos, o poeta usa imagens fortes, chocantes até, para configurar, à la João Cabral, uma tragédia em ritmo de flamenco e peixeira nordestina.

No poema "Pastor", a voz lírica do poeta se volta para as sensações provocadas pelo vento nas paragens do sertão. Ali, as dores são cavalos xucros e, para curá-las, é preciso voltar os olhos para "uma roça de estrelas". Por fim, em "Retrato", um Narciso mede distâncias em sua eterna briga com o espelho d'água.

Além de poeta, José Inácio Vieira de Melo é co-editor de Iararana, revista baiana de arte e literatura. Com seu selo Aboio Livre, ele organizou e publicou em 2004 o volume Concerto Lírico a Quinze Vozes Uma Coletânea de Novos Poetas da Bahia.

Um abraço,

Carlos Machado

 

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Uma roça de estrelas

José Inácio Vieira de Melo

 



BODAS DE SANGUE

                                       Para Cristina Hoyos


Que beleza é essa que tanto me incomoda?
Que olhar de tâmara — sâmaras que se
                                          [ semeiam —
transborda dos cântaros de tua íris?
O que anunciam teus inquisidores e
                               [ translúcidos olhos?

Tudo em ti é duplo, senhora do amor bruxo.
De tuas mãos multiplicam-se os gestos
                                         [ e as bênçãos
e com tuas mãos dizes mais que cem mil
                                         [ bocas juntas
e essas mesmas mãos prenunciam a beleza
                                         [ de tuas ancas.
         
Mas mais do que tudo, o que impera em ti
são esses milagres que são tuas tetas,
dois punhais que a cada instante furam
                                         [ minha paz
e que me ensinaram a amargar a
                                  [ verdadeira sede.

Ah Cristina Hoyos, deusa de Espanha,
vem bailando em nuvens e em versos de
                                  [ García Lorca,
vem com teus punhais para a minha peixeira
                                  [ de 12 polegadas,
pois as nossas bodas só podem ser de sangue.



PASTOR


Na noite do Sertão,
a vastidão das ondas do vento
essas plagas sempre foram mar
invade e inunda o que há,
com fúria maior que a das águas.

A voz das ondas do vento,
com seus passos sem rastros,
deixa marcas indeléveis
e açoita as dores
esses cavalos xucros
que disparam no íntimo do vivente
como numa Tróia às avessas.

E quando as chamas começam a afogar,
os olhos estendem-se aos céus,
mira-se a lavoura necessária:
uma roça de estrelas.

Aqueles olhos se ovelham
e o sono é sereno.



RETRATO


O espelho fotografa as distâncias
um mar de vidro nos separa,

mas narciso em lago e nuvem,
evaporo-me, precipito-me
para compor o ritmo dessas passagens,
para fundar o signo dessas trans-formas.

Na face do espelho d'água:
a menina dos meus olhos,
a tua verônica coroada.

Reparo-me nos longes das lentes.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005

José Inácio Vieira de Melo
• "Bodas de Sangue"
   In Terceira Romaria
   Aboio Livre Edições, Salvador, 2005
• "Pastor"; "Retrato";
   In
Decifração de Abismos 1998 a 2001
   Aboio Livre Edições, Salvador, 2002