Pedro Nava
Caros amigos,
Antes de escrever suas memórias monumentais em seis gordos e deliciosos volumes,
o médico mineiro Pedro Nava (1903-1984) já havia figurado na Antologia de
Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos, organizada por Manuel Bandeira
e publicada originalmente em 1946. Bissexto, nessa acepção consagrada por
Bandeira, é aquele escritor que produz ocasionalmente.
Nava figura na antologia com o poema "O Defunto", transcrito ao lado, um texto
de alta qualidade. No entanto, todo o seu potencial como escritor está revelado
nas memórias: Baú de Ossos, 1972; Balão Cativo, 1973; Chão de
Ferro, 1976; Beira-Mar, 1978; Galo-das-Trevas, 1981; e O
Círio Perfeito, 1983. O memorialista parte da história de seus antepassados
e conta sua aventura pessoal. Mas, ao falar de si, ele dá conta da história, dos
hábitos e costumes do país — principalmente em Minas e no Rio de Janeiro — em
boa parte do século XX.
Livros de memória há muitos. Mas poucos têm a força do estilo de Pedro Nava. São
seis volumes que podem ser lidos e relidos com gosto. Com enorme freqüência
encontram-se trechos de prosa soberba e antológica.
No poema "O Defunto", o que se destaca são os procedimentos, bem ao gosto dos
modernistas, que procuram chocar pelo inusitado; causar estranheza pelo tema
desagradável, que as pessoas normalmente querem evitar. Talvez tenha sido esse o
intuito de Nava, um homem que, como médico, aprendeu a conviver com a hora de
todos indesejada. E, no fim, um homem que — para choque e pasmo dos amigos
— construiu a própria morte.
Um abraço,
Carlos Machado
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Sobre a hora indesejada
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Pedro Nava |
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O DEFUNTO
Quando morto estiver meu
corpo,
Evitem os inúteis disfarces,
Os disfarces com que os vivos,
Só por piedade consigo,
Procuram apagar no Morto
O grande castigo da Morte.
Não quero caixão de verniz
Nem os ramalhetes distintos,
Os superfinos candelabros
E as discretas decorações.
Quero a morte com mau-gosto!
Dêem-me coroas de pano.
Dêem-me as flores de roxo pano,
Angustiosas flores de pano,
Enormes coroas maciças,
Como enormes salva-vidas,
Com fitas negras pendentes.
E descubram bem minha cara:
Que a vejam bem os amigos.
Que não a esqueçam os amigos.
Que ela ponha nos seus espíritos
A incerteza, o pavor, o pasmo.
E a cada um leve bem nítida
A idéia da própria morte.
Descubram bem esta cara!
Descubram bem estas mãos.
Não se esqueçam destas mãos!
Meus amigos, olhem as mãos!
Onde andaram, que fizeram,
Em que sexos demoraram
Seus sabidos quirodáctilos?
Foram nelas esboçados
Todos os gestos malditos:
Até os furtos fracassados
E interrompidos assassinatos.
— Meus amigos! olhem as mãos
Que mentiram às vossas mãos...
Não se esqueçam! Elas fugiram
Da suprema purificação
Dos possíveis suicídios.
— Meus amigos, olhem as mãos!
As minhas e as vossas mãos!
Descubram bem minhas mãos!
Descubram todo o meu corpo.
Exibam todo o meu corpo,
E até mesmo do meu corpo
As partes excomungadas,
As sujas partes sem perdão.
— Meus amigos, olhem as partes...
Fujam das partes,
Das punitivas, malditas partes ...
E, eu quero a morte nua e crua,
Terrífica e habitual,
Com o seu velório habitual.
— Ah! o seu velório habitual!
Não me envolvam em lençol:
A franciscana humildade
Bem sabeis que não se casa
Com meu amor da Carne,
Com meu apego ao Mundo.
E quero ir de casimira:
De jaquetão com debrum,
Calça listrada, plastron...
E os mais altos colarinhos.
Dêem-me um terno de Ministro
Ou roupa nova de noivo ...
E assim Solene e sinistro,
Quero ser um tal defunto,
Um morto tão acabado,
Tão aflitivo e pungente,
Que sua lembrança envenene
O que resta aos amigos
De vida sem minha vida.
— Meus, amigos, lembrem de mim.
Se não de mim, deste morto,
Deste pobre terrível morto
Que vai se deitar para sempre
Calçando sapatos novos!
Que se vai como se vão
Os penetras escorraçados,
As prostitutas recusadas,
Os amantes despedidos,
Como os que saem enxotados
E tornariam sem brio
A qualquer gesto de chamada.
Meus amigos, tenham pena,
Senão do morto, ao menos
Dos dois sapatos do morto!
Dos seus incríveis, patéticos
Sapatos pretos de verniz.
Olhem bem estes sapatos,
E olhai os vossos também.
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