Número 116 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 11 de maio de 2005 

«Tenho sede de oceano / porque se afunda na minha alma / um peixe. » (Nauro Machado)
 


Heitor Ferraz Mello


Caros,

O poeta paulista Heitor Ferraz Mello (1964-) nasceu na França, passou a infância em São José dos Campos e, aos 11 anos, mudou-se para São Paulo. Jornalista, editor de livros e mestre em literatura pela PUC-SP, Ferraz Mello estreou em 1996 com o volume de poemas Resumo do Dia. Depois disso, publicou mais quatro coletâneas de poesia: A Mesma Noite (1997); Goethe nos Olhos do Lagarto (2001); Hoje Como Ontem ao Meio-Dia (2002); e Pré-Desperto (2004). No mesmo ano deste último livro, saiu Coisas Imediatas [1996-2004], uma reunião de todos os cinco títulos do autor.

Na poesia de Heitor Ferraz Mello notam-se traços marcantes de prosa. É fácil perceber que o poeta trabalha, quase sempre, sem os recursos tradicionais da poesia, como a metáfora ou esquemas sonoros como rimas e assonâncias. Também são prosaicos os assuntos: o cotidiano do homem comum dentro de casa ou no embate das cidades. É isso que dá o tom, por exemplo, dos poemas "A Catedral se Impõe", "Minha Casa" e "O Deus", transcritos ao lado.

Outra característica da poesia de Ferraz Mello é a reconstrução de memórias, apresentadas em quadros familiares ("Nossas microbiografias" e "Álbum de Família") ou em paisagens urbanas como em "Mais Uma Vez Prados". A poesia de Heitor Ferraz Mello está firmemente enraizada no dia-a-dia e fala das coisas imediatas que vê e sente, na rua, em casa, no elevador ou no "nono andar de um prédio comercial". Não é por acaso que o primeiro livro do poeta se chama Resumo do Dia.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado


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DOM QUIXOTE (1)

Agradeço a todos os que me enviaram e-mails a propósito do boletim anterior — uma homenagem a Miguel de Cervantes e ao quadricentenário de Dom Quixote de La Mancha. Numa dessas mensagens, Francisco Varela levanta uma dúvida em relação a um verso do "Soneto da Loucura", de Drummond. No boletim, transcrevi:

e eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,

Varela pergunta se não seria "e eu parto EM meu rocim". Voltei às fontes: os livros As Impurezas do Branco (José Olympio, 2a. ed., 1974) e Poesia Completa (Nova Aguilar, 2002). Em ambos o verso é tal e qual o que saiu no boletim. Mesmo assim, parece óbvio: Varela está certo. No site, já fiz a correção.


DOM QUIXOTE (2)

Outro e-mail que merece destaque foi enviado pelo cantor e compositor Sonekka. Ele me apresenta uma bela canção, "Quixote", composta pelos paulistanos Élio Camalle e Léo Nogueira. Na visão dessa dupla, há uma "doce Dulcinéia" que espera em vão por um marido que não volta mais. Como seu homônimo cervantino, esse Quixote enlouquece nas ruas de São Paulo:

Tem moinhos de vento na cabeça
Tá falando sozinho em espanhol
Cavaleiro andante às avessas
Se afogou pra salvar o pôr-do-sol.


Para escutar o "Quixote" de Élio Camalle e Léo Nogueira, na voz do primeiro, clique no alto falante acima. Nosso agradecimento aos compositores por terem franqueado a audição da música aos leitores de poesia.net.
Nota posterior: a canção "Quixote" foi rebatizada para "Triste Figura".


DOM QUIXOTE (3)

Ainda sobre o Quixote, quero fazer uma observação. Quem me
sugeriu fazer um boletim sobre os 400 anos do Cavaleiro da Triste Figura foi meu amigo Valdomiro Santana, de Salvador. Colaborador ativo desta e-publicação, ele não somente sugere nomes de poetas "boletináveis" como fornece bons suprimentos de frases para a epígrafe do boletim.




 

Coisas imediatas

Heitor Ferraz Mello

 


A CATEDRAL SE IMPÕE (ÀS 17H45)


O que observo deste 9° andar
de um prédio comercial
em São Paulo, na alameda
Ministro Rocha Azevedo

É o lilás de um fim de tarde
em contraste com o resíduo
dourado do sol se pondo
em algum lugar, atrás dos prédios

É a forma de uma catedral
que se desenha no asfalto úmido
com suas agulhas espichadas
pelos pneus dos carros

O que observo com o corpo
levemente apoiado na janela
é que o dia acaba do lado de fora
contra a continuidade do mercúrio
 

NOSSAS MICROBIOGRAFIAS

Às vezes acontece
do acaso
inconfortável
abrir uma brecha
na rasteira do presente
e alguma imagem
que estava presa
se libertar.
Do silêncio
escapa um rumor
de risos e vozes
(talvez na ponte
sobre um velho ribeirão)
e braços longos e desajeitados
de uma garota
longa e desajeitada
se acomodam sobre as coxas
e outra garota
esconde a timidez
de uma gargalhada
colocando a mão na boca.

                    De Pré-Desperto (2004)


MINHA CASA

Minha casa é um refúgio
De noite
quando o sono não chega
vou até o portão para fumar um cigarro
O homem protegido
sob uma pequena marquise de uma garagem
fala sozinho
igual ao meu filho quando brinca
O homem imita conversas
e revolve uma sacola de supermercado
Afasto-me do poema que os olhos espiões
poderiam indicar
Refugio-me entre artigos da casa
Aquele homem sob a marquise
permanece inabordável

                    De Hoje Como Ontem ao Meio-Dia (2002)


ÁLBUM DE FAMÍLIA

Então
ele se sentou
num banquinho
ajeitou
o chapéu de feltro
colocou o filho
mais velho
ao seu lado
em pé
e se deixou fotografar
Então
ela se sentou
no murinho
da casa
esticou o vestido
cobrindo os joelhos
sorriu
para a lente
e também
se deixou fotografar

                    De Goethe nos Olhos do Lagarto  (2001)


MAIS UMA VEZ PRADOS

São os sinos,
são os sinos de igreja que
no meio da noite
me atormentam.

São as escadas espirais
talhadas em pedra e traição.

É a janela do quarto,
retângulo de madeira,
aberta de madrugada
e um lobo-guará
como guarda-noturno.

São os sinos da igreja
ou o grito desesperado
de uma requinta
anunciando os dias escoados.

                                      24.06.93
 

                    De A Mesma Noite (1997)


O DEUS

Quando a noite é só o barulho
de um galo desregulado
e o apito distante de um guarda-noturno

Nesta hora
em que os corpos procuram a ausência
tão necessária
e a dor
um ponto-de-vista

Procuro
em cada canto do quarto
— olhos de treinada coruja —
o deus que me pronuncia.

                    De Resumo do Dia (1996)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005

•  Heitor Ferraz Mello
    Coisas Imediatas [1996-2004]
   
Ed. 7Letras, Rio de Janeiro, 2004