Número 117 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 18 de maio de 2005

«Dói olhar o mar de uma cadeira.» (Fernando Paixão)
 


Ilka Brunhilde Laurito


Caros amigos,


A poeta paulistana Ilka Brunhilde Laurito (1925-) estreou em 1948 com o livro Caminho. Formada em letras pela USP, trabalhou no magistério secundário e superior e vem publicando, além de poesia, contos, crônicas e ficção infanto-juvenil.

Ativista, Ilka participou de  movimentos de divulgação literária como o Poesia na Praça, que fazia exposições de poemas na Praça da República,  no centro de São Paulo, em 1969, e Poetas na Praça, em 1975, um espetáculo teatral.

Em 1987, Ilka foi distinguida com o Prêmio Jabuti, atribuído ao livro Canteiro de Obras. Três anos depois, ela voltaria a receber a mesma láurea com o livro de ficção juvenil A Menina que Fez a América.

Nos textos transcritos ao lado, Ilka Laurito revela uma poesia que tem como ponto de partida a observação de eventos cotidianos. A mulher e seu homem na alcova, onde se misturam os cheiros de suor e de alfazema. O trabalho doméstico de arrumar a cama. O desempregado que carrega a placa de publicidade pela rua.

Com essa mesma capacidade de extrair poesia de quase-nadas, migalhas do cotidiano, Ilka reconstrói esse ditado popular:


ADÁGIO

Devagar
não vim ao longe.
Nem sequer cheguei aonde.

Eu me quebrei
buscando a fonte.
Mas inteira é a sede
do meu cântaro.


Um abraço,

Carlos Machado

 

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Para produzir este boletim enfocando a poesia de Ilka Brunhilde Laurito, contei com a ajuda da professora, ensaísta e poeta Renata Pallottini. Ela não somente me chamou a atenção para o trabalho de Ilka como, depois, conseguiu a foto da autora de Canteiro de Obras. Um abraço à Renata Pallottini.
 

                      •o•
 

NOTA EM 18/12/2012

O poesia.net registra, com pesar, o falecimento da poeta paulistana Ilka Brunhilde Laurito, ocorrido no dia 11/12/2012.

 

Suor e alfazema

Ilka Brunhilde Laurito

 



COMUNHÃO

Já que me sinto muito digna
de me assentar à tua mesa,
não quero migalhas, não,
eu quero o pão inteiro.

Tu e eu, massa e fermento
em ávido silêncio:
casca e miolo,
o bolo
e o seu recheio

Vem.
Estende os lençóis sobre esta
mesa
com cheiro de suor e de
alfazema.
E vamos trabalhar a noite
e o seu levedo
com as mãos,
a boca,
o corpo aceso,
para que a aurora nos en-
tregue,
ainda quentes,
as últimas fatias de amor
amanhecente
com gosto de café, de leite
e de manteiga.



V [Canto ao arrumar a cama,]

Canto ao arrumar a cama,
canto
diligente verônica
oficiando os passos
da paixão cotidiana.

Exibo ao meu espelho atônito
os lençóis que estampam o corpo
do senhor que nunca me salvou
da crucificação no pranto.

E canto porque canto,
sem esperanças de glória
ou de ressurreição.



VIII [Olhos que tacteais este poema]

Olhos que tacteais este poema
como instruídos dedos
sobre as nervuras do espalmar
do texto,
olhos, lúcidos parceiros
da voz alinhavada em letras,
a luz que vos guia o íntimo
passeio,
cegos videntes,
é a que decifra os gestos desta
mão
que fala e canta
imprimindo as rugas do seu
críptico desenho
na lisa pele do papel em branco.

Leitor,
meu quiroamante.



MANHA(Ã)

O recém-nascido
chora de madrugada
seu choro alto.
Também o dia
recém-saído
de seu parto
dói a vida
no grito
anunciador
dos galos.

E se entreouvem
(a criança e a alvorada)
e pois que participam
da mesma hora clara
de reinventar a luz
na carne do mundo
e das criaturas
repartem irmãmente
a voz dúplice
da
noite.

Mas feita a escolha,
cabe à criança o silêncio,
e o seu avesso
à manhã que vai nascer
inaugurando inda uma vez
a criação dos sons

e o secreto mudar
da sombra em sol.
Agora,
a criança
dorme:

— O dia
acorda.
E sobre
o sono mudo
do filho do homem
debruça
o véu da aurora
e a canção de ninar
da noite
morta.

                        (1975)



PUBLICIDADE

Proibido colocar cartazes:
em chão
parede
poste.

(Em homem:
pode.)

                        (1963)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005

Ilka Brunhilde Laurito
• "Comunhão"; "Olhos que tacteais";
   "Canto ao arrumar a cama"

   In Canteiro de Obras
   Scortecci, São Paulo, 1985
• "Manha(ã)";  "Publicidade"
   In Sal do Lírico: Antologia Poética
   Quíron, São Paulo, 1978