João de Moraes Filho
Caros,
"Onde eu sou / descansa um silêncio, / e um moço fazendo círculos com pedras /
na beira do rio." Estes versos, que compõem a totalidade do poema "Repare", são
como uma carteira de identidade poética de seu autor, o jovem João de Moraes
Filho (1977-). Nascido em Cachoeira, cidade colonial à margem do rio Paraguaçu,
no Recôncavo baiano, o poeta retoma em seus textos essas pedras que fazem
círculos na água
e marcam para sempre a memória.
Nessa cidade cheia de História e de histórias, João de Moraes Filho ancora sua
poesia — pelo menos aquela que produziu até hoje. Em 2004, ele ganhou o prêmio
Braskem de Literatura, na categoria poesia, com o volume Pedra Retorcida,
que assinala sua estréia em livro. Participou, também, de Concerto Lírico a
15 Vozes (2004), antologia de novos poetas baianos organizada pelo também
poeta José Inácio Vieira de Melo.
Do livro Pedra Retorcida extraí os poemas transcritos neste boletim. As
rememorações da infância cachoeirana se insinuam em todo o volume. Elas estão em
"Pedra Retorcida", o poema-título, e também aparecem nos outros textos. É
interessante observar que talvez a dimensão cultivada pelo poeta não seja sempre
a do passado. Graduado em letras, João de Moraes Filho viveu algum tempo no Rio
de Janeiro e depois retornou para a Bahia, onde mantém estreito contato com sua
cidade. Então, é possível que em seus poemas haja uma interpenetração de memória
e vivências atuais.
São certamente de hoje as "loucuras" de que o poeta se diz acometido em
"Asteróide B612". Alucinações do presente com raízes na infância. Loucuras na
forma de bolas de gude. O que me encanta nos dois últimos versos desse curto
poema ("Não acredito na lucidez / dos homens que não doem") é a ambigüidade. O
poeta desconfia de quem? Dos homens que não (se) doam ou daqueles que não se
doem? Tanto faz.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Pedras na beira do rio
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João de Moraes Filho |
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PEDRA RETORCIDA
Durante algum tempo,
hesitei abrir aquela porta.
O sentido de toda cidade
estava atado, como um nó,
lá dentro. Talvez fosse
o que jamais procurasse:
o sentido das coisas
explicadas por trás das portas.
Algumas Ruas também
hesitei atravessar.
Eram incansáveis e longas,
como as noites brincadas
lá fora, onde tudo mais cabia.
Em verdade,
nada procurava
além de um pequeno gole
guardado ou esquecido
por trás daquela porta verde:
sem trancas, maçanetas e levemente arranhada
com a dor de abri-la.
Os olhos esverdeados
acompanhavam a inquietação do vento
se infiltrando pela porta exilada
com quem fala: ó de casa!
(As Ruas atravessam o tempo não vencido.)
Aquela porta que hesitei abrir
largou mão de sua fronteira
e deu lugar a janelas
que me assombram pacientes,
até que o frio as feche novamente.
Faz frio por detrás das portas retorcidas;
o outro nos decifra,
enquanto se esconde.
ENGENHO VITÓRIA
Um silêncio ressoa cá dentro.
Talvez alguma faísca infantil
calasse o risco da margem esquerda dessa mão
calejada em favor do tempo.
Chamam caminho,
a queimadura esticada no chão
de um canavial verde-cinza renovado.
Não que se queira,
mas esse cheiro fumacento de labuta
não escolhe estações.
HERMANO
ao puro cubismo de um Paraguaçu legítimo
Essas sombras luminosas
tecem a noite escondida
sobre a moldura da Igreja do Amparo
onde meninos velam cinzas
que esmaecem e atritam a morte
com o tempo pintado
num sobretom clareado de azul.
PROJEÇÃO CACHOEIRANA EM 16mm
I
Por baixo dos tapetes
escorrem versos cadenciados
de rotina concreta
enquanto o ano encerra quatro estações.
II
Lá fora, a procissão carrega um corpo nu
sem códigos de barras nem etiquetas azuis.
III
Exilado,
fujo em barquinhos de papel
jogados, em dias de chuva,
no filete de uma lágrima.
IV
Olhando em janelas,
lembro das felicidades,
Baudelaire, Narlan,
aquele homem no bar do horizonte
com braços abertos e a felicidade do mundo,
num milagre antecipado.
V
Todos os sóis nascem pontualmente
em portos de margens estreitas
no exprimido das cidades.
VI
... fujo fingindo-te amor,
para não morrer dizendo não.
ASTERÓIDE B612
Certas loucuras
me vêm em bolinhas de gude.
Não acredito na lucidez
dos homens que não doem.
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