Soares Feitosa
Caros amigos,
O cearense Francisco José Soares Feitosa (1944-) é um poeta sui generis.
Embora seja hoje talvez uma das pessoas mais envolvidas com poesia no Brasil,
ele garante que até os cinqüenta anos jamais havia escrito um verso sequer.
Mais comuns — ou, pelo menos, mais conhecidos — são os poetas que escrevem e não
publicam até idade bem madura. Soares Feitosa é diferente: não escrevia.
Advogado, ex-fiscal do imposto de renda, ele diz que, até o estalo da poesia, só
produzia textos burocráticos. Mas o certo é que o poeta brotou. Talvez nem ele
mesmo saiba como nem por quê.
Soares Feitosa pratica um lirismo que, para mim, é marcado por uma certa
nostalgia, embora esse sentimento quase nunca compareça nos versos de forma
expressa. Talvez essa melancolia esteja nas referências ao mar, viagens,
paisagens vistas através de janelas. Esse me parece ser o tom dominante, por
exemplo, no poema "Uma Canção Distante", transcrito ao lado.
Em "Strip Tease", as palavras resvalam para um tom suavemente erótico. Nos
outros poemas destacam-se cenas que são, a um tempo, cotidianas e incomuns,
criando nessa contradição um espaço de estranhamento.
Boa parte dos poemas publicados por Feitosa, tanto na internet como em seus
folhetos poéticos, são textos relativamente longos. Ao fazer a seleção ao lado,
dei preferência aos poemas breves porque permitem oferecer amostra mais variada
do trabalho.
Não posso encerrar estas linhas sem falar de outra faceta do envolvimento de
Soares Feitosa com a poesia. Foi ele o criador do primeiro site poético
brasileiro, o Jornal de Poesia,
iniciado em 1996, bem nos primórdios da internet dita comercial (antes era
puramente acadêmica, pois só existia nas universidades).
Em nove anos de existência, o site reuniu o maior acervo de poesia em língua
portuguesa no país. Além de antologias de milhares de poetas, o Jornal de Poesia
tem as obras completas, ou quase, de clássicos como Camões, Pessoa, Castro Alves
e Augusto dos Anjos. Isso, ao lado de seus próprios escritos, é que torna Soares
Feitosa uma das pessoas mais envolvidas com poesia no Brasil.
Um grande abraço,
Carlos Machado
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NOTA
Foto do poeta atualizada em 11/06/2006. |
Uma canção distante
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Soares Feitosa |
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STRIP TEASE
Jamais eu ficaria quieto
sob o teu olhar;
que muito menos quietos,
no direito de ir e vir,
sobre o teu corpo,
seriam os meus olhos lívidos.
Porque sobre mim,
bastam os sons
dos teus vestidos:
já me desvestem a alma.
Salvador, madrugada alta, 5/12/1996
UMA CANÇÃO DISTANTE
Guardo tuas coisas para uma viagem
(em que tempo?),
em que vagão viajaremos — e as janelas:
abertas pr'uma paisagem verde...!?
Guardo tuas coisas para uma viagem,
(em que modo?)
no modo presente, no modo advérbio, passado—
passam, passam coisas, que os meus dedos aos
[ lábios,
de uma mão perfeitamente trêmula,
cantam uma canção distante:
silêncio.
Guardo tuas coisas para uma viagem,
(em que vontades?):
pois se me fugiram os cavalos meus,
arrebentados todos os trens,
mortos os condutores de todos os carros,
naufragadas todas as jangadas,
e o mar,
brutalmente mar,
mesmo assim,
as coisas guardadas, tuas, fiel:
(onde?):
navegar é possível.
Salvador, tarde leve, 02/08/1996
ARCHITECTURA
Um dia, Ela
desenhará em chãos longínquos a casa só nossa,
que eu farei com estas mãos.
Os tijolos, eu os amassarei com os meus pés.
Às telhas —
hei de aprontar o barro mais macio,
e as formas serão por mim,
uma a uma, completas;
Ela as alisará longamente —
seus dedos molhados de um profundo silêncio:
só os pássaros.
Fortaleza, manhã de 19/11/1998
MILLENNIUM
Nem anzóis, nem redes.
Sequer ele próprio, em boa culinária,
aos molhos, azeites, azeitonas,
numa manhã de folguedos. Não.
Nem isto. Peixe algum te chegue à boca.
Que seja teu,
permanente, ainda que escuro seja
o dia —
espelho e face, a ti, o Retrato do Peixe.
Fortaleza, 22/12/2000, de tarde
POEMA DO SIM
Tempo demais vivi perto da solidão e,
assim, desaprendi o silêncio.
(Friedrich Wilhelm Nietzsche)
Não, não e não — mil vezes não!
Porque me disseste: — um silêncio obsequioso.
Não.
Em contra-
partida, devo
dirigir-te tão-só a não-palavra cheia de presságios.
É a noite.
As nuvens passam
e seus soturnos:
— como farei para saberes que não penso em ti!?
Assinado:
SF
Fortaleza, noite leve, 28/10/1997
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