Número 121 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 15 de junho de 2005

«A memória verdadeira / é como o cedro — tem pés / calçados em diamante.» (Emily Dickinson)
 


Fernando Fábio Fiorese Furtado


Caros amigos,


Mineiro de Pirapetinga, onde nasceu em 1963, Fernando Fábio Fiorese Furtado é mais identificado com a cidade de Juiz de Fora, onde reside desde criança. Professor de literatura, poeta, contista e ensaísta, Fiorese lançou seu primeiro livro solo de poesia, Leia, Não é Cartomante, em 1982. A esse se seguiram mais dois livros, lançados em 1985 e 1990.


Um fato que me parece marcante na formação do poeta foi sua participação no grupo de escritores, artistas plásticos e fotógrafos que produziram, nos anos 80, o folheto de poesia Abre Alas e a revista D'Lira. Dessa mesma nascente vêm outros poetas juiz-foranos como Iacyr Anderson Freitas (poesia.net n. 29) e Edimilson de Almeida Pereira (boletim n. 114). Na poesia desses três amigos — que inclusive já assinaram um livro a seis mãos, Dançar o Nome (2000) — encontram-se alguns traços comuns.

Um desses traços está na freqüência com que personagens do interior mineiro
— reais ou inventados? não importa —  são incorporados aos poemas e vão compondo uma espécie de mostruário da diversidade humana. Na série "Pequeno Livro de Linhagens", de 1997-1998, por exemplo, Fiorese titula os poemas com os personagens: "Fidélis, morador das margens", "Vicentim, reparador de livros", "Ary, hóspede sem pressa".

No caso de Fiorese, há muito de memória nos personagens e nos ambientes em que eles se movem. Nesse aspecto, o poeta escreve como quem desfaz a bagagem da memória, para me valer da metáfora viajante explorada por ele no primeiro poema ao lado. O resultado são retratos pungentes de pequenos territórios humanos, onde há sempre "uma página da tabuada de menos". E o que é a vida senão essa tabuada?

Memória também parece ser a matéria-prima que põe de pé os poemas "Memorabilia", que se entrega pelo título, e "[Por Ausência]" — nome atribuído por mim a um trecho sem título. O texto "Caprichos Bibliográficos", parte 2, foi extraído de uma seqüência escrita para homenagear o ensaio homônimo do filósofo Theodor W. Adorno.

Por fim, em "Carta Aberta", o poeta lança sua advertência "aos que prometem Ítaca sem epopéia", "aos que preferem o bunker ao abismo". Escrever é vingança, ele avisa.

Depois de seus três primeiros livros de poesia e outros de contos e ensaios, Fernando Fiorese reuniu em 2002 sua produção poética do período de 1986-2000, enfeixada no volume Corpo Portátil. Desse livro vieram todos os poemas aqui transcritos. Inquieto, o poeta já publicou novo volume em 2003: Dicionário Mínimo, uma coletânea de poemas em prosa,  formulados à maneira de verbetes.

Abraço,

Carlos Machado

 

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Tabuada de menos

Fernando Fábio Fiorese Furtado

 




Andrew Atroshenko - Awaiting
Andrew Atroshenko, russo, Esperando



COMO DESFAZER BAGAGENS

Como quem de viagem
demora a acomodar-se
ao clima, ao horário,
às vogais de outra sintaxe,
também escrever estranha
quando muda de paisagem.

Como quem de viagem,
o que carrega apouca
a dicionários, passagens
e alguma muda de roupa,
também escrever exige
aprender a descartar-se.

Como quem de viagem
pouco ou nada decifra
do manuscrito-cidade
(mal soletra as esquinas),
também escrever ensina,
menos importa encontrar-se.

Como quem de viagem
evita, quando sabe,
os apelos do fóssil,
do que é fausto adrede,
também escrever prefere
o que se dá sem salvas.

Como quem de viagem
sabe o prazer de andar
sem endereço ou idade,
com a roupa amassada,
também escrever comparte
esse corpo sem abas.

Como quem de viagem,
para rever a janela onde
lhe sorriu uma criança,
o embarque adiaria,
também escrever alcança
os vestígios desse dia.

Como quem de viagem,
das malas faz relicário
de rostos, ruídos e mares,
de balas, livros e ácidos,
escrever também seria
como desfazer bagagens.

                        De Corpo Portátil (1998-2000)



Andrew Atroshenko - Paulina
Andrew Atroshenko, Paulina



CAPRICHOS BIBLIOGRÁFICOS

2.

Livro só existe por dentro.
Por fora, apenas postula
um lugar onde se acomode
à ordem feliz da prateleira
para disfarçar as rasuras
que, no íntimo, espreitam,
quais apóstrofes à procura.
Livro só existe do que nele
seja apócrifo e segundo,
sem o familiar do bilhete,
sem maquilagem para as rugas;
e o quanto fechado promete,
aberto, o leitor converte
num inventário de fugas.

                        De Corpo Portátil (1998-2000)



Andrew Atroshenko - Pensive
Andrew Atroshenko, Pensativa



CARTA ABERTA

                                       Ao anagrama Magog

aos que de mãos impolutas assinam a miséria
aos que preferem o bunker ao abismo
aos que propõem civilizar o coração selvagem
aos que no teorema petrificam o poema
aos que não riem do dicionário
aos que emplumam o cão
aos que evitam os olhos do inimigo
aos contra-regras do gran teatro del mundo
aos que prefixam o radical
aos que prometem Ítaca sem epopéia
aos que rezam para adormecer o escorpião
aos que não sabem fazer o plural
aos que horizontalizam a paisagem
aos que tomam assento

a todos advirto:
escrever é também vingar-se

                        De Papéis Avulsos



Andrew Atroshenko - Looking back
Andrew Atroshenko, Olhando para trás



MEMORABILIA

                                  (trecho)

Mesmo os tios alfaiates desconhecem
a fazenda e o fio com que tecemos
— ou nos tece — essa camisa adulta
de esquecimento, os bolsos vazios,
a não ser por uma página
da tabuada de menos.
Inútil postular o périplo
da bicicleta alemã:
os pedais riem deste corpo
sem rodas e sem rumo,
pedalando para o caos.

                        De A Primeira Dor (1994-1998)



Andrew Atroshenko - Nathaniella
Andrew Atroshenko, Nathaniella




[POR AUSÊNCIA]

Por ausência a boca nasce
de tudo que a preencha,
compotas, credos, hiatos.
E não há costura que defenda
dos dentes da morte
roendo os telhados,
nem do beijo véspera do escarro,
do turbilhão de fonemas acres
que enquanto avança
a voz do pai faz brilhar
(antes a química,
depois a semântica).
Também brilhava um clarinete,
criado à sombra da clave de sol,
cansado de atravessar paredes
e, duas oitavas acima,
virar dor, serrote, martelo.

                        De A Primeira Dor (1994-1998)


 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005

Fernando Fábio Fiorese Furtado
In Corpo Portátil
Escrituras Editora, São Paulo, 2002
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Imagens: quadros de Andrew Atroshenko (1965-), pintor russo contemporâneo