Ronaldo Costa Fernandes
Caros amigos,
Romancista, poeta e ensaísta, Ronaldo Costa Fernandes (1952-) nasceu no
Maranhão, criou-se no Rio de Janeiro e depois fincou raízes em Brasília. Morou
nove anos na Venezuela, onde dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros da
Embaixada do Brasil em Caracas. Foi também coordenador da Funarte em Brasília,
até 2003.
Costa Fernandes é doutor em Literatura pela
Universidade de Brasília e já ganhou vários prêmios literários, entre os quais o
Casa de las Américas, com seu quarto romance, O Morto Solidário, de 1998.
Como poeta, ele estreou com um livro chamado Urbe, em 1975, hoje
renegado. Assim, seu début oficial ficou sendo o volume Estrangeiro,
publicado 22 anos depois. Vieram em seguida Terratreme (1998),
Andarilho (2000) e Eterno Passageiro (2004).
Para o também poeta e ensaísta Antonio Carlos Secchin, a poesia de Ronaldo Costa
Fernandes tem como um de seus traços mais significativos "a imagem de um poeta
em trânsito". É verdade. Essa mobilidade se mostra até nos títulos dos livros,
que são perfeitas variações sobre o mesmo tema: o poeta é andarilho,
estrangeiro, eterno passageiro.
E qual a bagagem transportada por esse viajante? Na análise do contista e
romancista Hugo Almeida, o poeta carrega o desassossego dos viventes nestes
tempos marcados pelo "demônio do silêncio" e pela "imensidão do medo"
— como avisam seus próprios versos.
Buscar o humano, inquirir, tentar descobrir, no rosto do dia banal, a senha
secreta de algo maravilhoso ou terrível. O desassossego dessa procura é talvez o
motor que dá energias ao andarilho. Não há dúvida: é essa urgência de perguntar,
mesmo sem esperar resposta, que preside todos os textos escolhidos para esse
boletim.
Embarquemos, portanto, na viagem desse eterno passageiro.
Um abraço,
Carlos Machado
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O eterno passageiro
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Ronaldo Costa Fernandes |
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O TEMPO
O tempo e sua matéria
a máquina dos meus humores
tão rica e mineral
enquanto lá for
a sonata dos desatinos
orquestra o boi que se estende no varal.
O tempo e sua miséria,
deus negro que não encontra o sono.
O tempo e sua morfologia
feita de nada e de tudo
como alguém que anda
com os calcanhares para a frente.
O tempo e sua bílis negra,
atrabiliário e perverso,
monstro do Loch Ness,
ó profundeza feita de vazio.
O tempo e sua caixa de música
o lugar dos sons prisioneiro,
o que se escuta é o silêncio das horas
lambendo o ar rarefeito.
O tempo — animal que não envelhece,
nós é que passamos por ele
como alguém que acena de um ônibus
para a imobilidade saudosa
de um bar à beira da estrada.
INDÚSTRIA DO AMARGO
A indústria do amargo desassossego,
a patente do medo, a geringonça
movendo as vísceras dentadas,
a fábrica de desacertos mostra o intestino,
manufatura de mercadoria e dejeto,
o lodo e o pêndulo como destino.
Eis o lodo, barro inútil para fazer gente,
massa fecunda para fabricar o desengano.
Agora a outra prensa do nada:
o pêndulo: que é o mesmo e seu avesso,
ora num lugar, ora em outro,
sem nunca sair de onde está;
preso de si, são dois em um,
um que se faz de dois,
para iludir a salmoura da matéria.
A IMAGINAÇÃO DOS BASTARDOS
Como serão os anjos na velhice?
Aqui onde a queda é ascensão
não duvido da existência
do hálito de Deus.
Somos as raízes mortas
cheirando a ferro,
respirando o incenso do monóxido de carbono.
As putas recolhem entre as pernas
a espécie sutil de réptil
seco da Johntex:
o pânico feito de elástico, músculo e noite.
(de Eterno Passageiro, 2004)
O ROSTO
Na sombra, os rostos têm todas as feições
porque nela cabe a imaginação
cuja cara é uma deusa sem rosto.
Por isso te vejo em todas as sombras —
sombras do quarto e da noite.
Por isso estás também
em minha mente
que vive em permanente sombra.
(de Estrangeiro, 1997)
SOLILÓQUIO
Com quantos ferros
se faz uma manhã?
Pernas mecânicas,
bocas mecânicas,
o mundo mecânico dos elevadores
e da depressão.
Os objetos pendem como frutas
— os objetos também amadurecem —,
a seiva dos ferros e madeiras.
A sala precisa ser podada
— que jardineiro extirpará as ervas daninhas
[ do sofá?
A tosse do motor de popa
— onde estão os barcos
na umidade dos prédios?
Os peixes nadam na clorofila das venezianas.
(de Andarilho, 2000)
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