Paula Glenadel
Caros,
Engraçado: a primeira vez que li o nome da carioca Paula Glenadel (1964-) foi na
revista Inimigo Rumor. Não me lembro bem se ela assinava um ensaio ou uma
tradução. Como na época a revista era editada por brasileiros e portugueses,
fiquei com a impressão de que se tratava de uma escritora portuguesa. (Tudo bem,
se eu tivesse ido ao expediente da revista, teria eliminado a dúvida. Mas nem
sempre a gente faz o óbvio...)
Depois conheci a Paula Glenadel, como poeta e carioca, no lançamento de seu
livro Quase uma Arte, este ano em São Paulo. Professora de literatura
francesa na Universidade Federal Fluminense, ela fez pós-doutorado na
Universidade de Paris VIII, com o poeta parisiense Michel Deguy.
Além de ensaios críticos e traduções, Paula escreve poesia. Seu primeiro livro
de versos, A Vida Espiralada, saiu em 1999. O segundo, Quase uma Arte,
já citado, é de 2005. Deste último extraí todos os textos ao lado.
O que me chama a atenção na poesia de Paula Glenadel é a forma
sensível e certeira com que ela se aproxima dos próprios sentimentos, como em
"Corcéis", ou da realidade circundante, como em "A Doadora", "Uma" ou mesmo em
"Crisálida".
Há um certo namoro de Paula Glenadel com a objetividade que se propõe e cultiva
nas poéticas mais recentes. Bem que a poeta tenta "controlar os desembestados
corcéis da alma". Mas freqüentemente ela se rende e deixa transparecer a emoção.
Em seus poemas existe um observador que não quer se esconder. Ele está presente
e destila ternura para com as pessoas e coisas contempladas. Há empatia do
narrador para com a mulher que vai doar um rim ao marido. Também é perturbadora
a cena do gavião vítima de acidente aéreo.
No livro Quase uma Arte, Paula Glenadel exibe, desde o título, uma lição
de prudência. Em seu primeiro trabalho, o mineiro Drummond sugere que existe ali
alguma poesia. Na mesma linha, Paula usa a conhecida expressão de Mallarmé:
rien ou presque un art. Afinal, ela mesma afirma que escrever é perigoso: é
uma espécie de "briga com Deus", um "contradestino" e ninguém sabe o que disso
pode resultar. Pode ser nada, ou quase uma arte.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Quase uma arte
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Paula Glenadel |
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CORCÉIS
controlar os corcéis
da alma,
desembestados,
com mão segura
como o lastro do navio,
seu peso em areia, em ouro:
o medo dá asa a cobra
cria monstros na sombra
viaja nos desvãos
estremece os alicerces
uiva sussurrando ruínas
A DOADORA
A dona do bar vai doar um rim para o marido. Ela me estende os cigarros que
compro todo dia. É amor isso? pergunta espantada. Eu vi em reportagem na tevê
francesa homens do terceiro mundo nas fronteiras da Europa: venderam seus rins e
nunca mais foram saudáveis. Alguns receberam menos do que o combinado. A dona do
bar doa porque senão ele morre e isso ela não pode suportar. Por que as mulheres
dos homens do primeiro mundo doariam um de seus rins aos seus maridos se podem
comprar um? A dona do bar não tem dinheiro ou não pensou nisso. Fala comigo e
seus olhos castanhos se arregalam.
UMA
apenas uma
de suas enormes mãos teria bastado
ao homem negro da praia
para segurar o jovem gavião morto
em acidente aéreo contra o vidro do restaurante
(pescoço quebrado; lindas penas, e o bico!)
quando o levou para enterrá-lo na areia
sob os olhares das crianças
CRISÁLIDA
para Luísa
agora já não pedes
meus nervos em pasto
agora já te afastas
crescida em beleza
agora me contas piadas
que aprendes ou inventas
agora pressinto tuas asas
LITANIA
para L.-F. Duchesne
troca de nome quem briga com deus
há nisso mais de um
jacó-israel e o anjo que o deixou coxo
saulo-paulo e a luz que o cegou
troca de nome quem perde ganhando
troca de nome quem renasce
troca de nome quem escreve
escrever é um contradestino
escrever desnomeia o nomeado
escrever desafia e afina o hieróglifo
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