Lêdo Ivo
Caros,
Poeta, romancista e ensaísta, Lêdo Ivo é alagoano de Maceió, onde nasceu em
1924. Residente no Rio de Janeiro desde 1943, estreou em poesia com a coletânea
As Imaginações (1944). De lá para esta data, seguiu-se uma numerosa
fileira de títulos em vários gêneros. Os de poesia, 23 livros, foram reunidos no
volume Poesia Completa 1940-2004 (Topbooks).
Historicamente, Lêdo Ivo é incluído na chamada Geração de 45, da qual é um dos
nomes mais conhecidos. Com 60 anos de exercício poético, seus textos abraçam
formas e temas variados ao longo do tempo. Entre os traços que perpassam quase
toda a sua trajetória estão as imagens marítimas, como se pode observar em
"Cemitério dos Navios", e uma persistente influência do simbolismo. Todos os
poemas que selecionei para este boletim enquadram-se nessa vertente lírica.
Nos agitados anos 60, o poeta também aderiu à chamada poesia participante,
escrevendo versos de marcado conteúdo social. Mas, como quase sempre acontece
nesses casos, os poemas dessa fase não estão entre o que há de melhor em sua
produção. Lêdo Ivo é membro da Academia Brasileira de Letras.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Sob o vôo das gaivotas
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Lêdo Ivo |
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CEMITÉRIO DOS NAVIOS
Aqui os navios se escondem para morrer.
Nos porões vazios, só ficaram os ratos
à espera da impossível ressurreição.
E do esplendor do mundo sequer restou
o zarcão nos beiços do tempo.
O vento raspa as letras
dos nomes que os meninos soletravam.
A noite canina lambe
as cordoalhas esfarinhadas
sob o vôo das gaivotas estridentes
que, no cio, se ajuntam no fundo da baía.
Clareando madeiras podres e águas estagnadas,
o dia, com o seu olho cego, devora o gancho
que marca no casco as cicatrizes
do portaló que era um degrau do universo.
E a tarde prenhe de estrelas
inclina-se sobre a cabine onde, antigamente,
um casal aturdido pelo amor mais carnal
erguia no silêncio negras paliçadas.
Ó navios perdidos, velhos surdos
que, dormitando, escutam os seus próprios apitos
varando a neblina, no porto onde os barcos
eram como um rebanho atravessando a treva!
O CHAMAMENTO ETERNO
Como a formiga que sobe à cama de um homem
atraída pelo açúcar da urina represada nas lagunas da noite
assim subiste até mim e me chamaste.
A morte é uma velha idiota, uma formiga tonta
que se embebeda com a urina dos homens.
OS UTENSÍLIOS
No galpão guardamos as enxadas enferrujadas.
E lá elas esperam a morte, como os velhos nos
[ asilos.
Esta foice não está mais afiada. Este ancinho
já não sabe limpar o cisco do pomar.
Mas não nos desfazemos de nada — é a nossa lei.
No depósito escuro onde repousam escorpiões
está até a chave que não abre nenhuma porta.
ASILO SANTA LEOPOLDINA
Todos os dias volto a Maceió.
Chego nos navios desaparecidos, nos trens
[ sedentos,
[nos aviões cegos que só aterrizam ao anoitecer.
Nos coretos das praças brancas passeiam
[ caranguejos.
Entre as pedras das ruas escorrem rios de açúcar
fluindo docemente dos sacos armazenados nos
[ trapiches
e clareiam o sangue velho dos assassinados.
Assim que desembarco tomo o caminho do
[ hospício.
Na cidade em que meus ancestrais repousam em
[cemitérios marinhos
só os loucos de minha infância continuam vivos e
[à minha espera.
Todos me reconhecem e me saúdam com
[ grunhidos
e gestos obscenos ou espalhafatosos.
Perto, no quartel, a corneta que chia
separa o pôr-do-sol da noite estrelada.
Os loucos langorosos dançam e cantam entre
[ as grades.
Aleluia! Aleluia! Além da piedade
a ordem do mundo fulge como uma espada.
E o vento do mar oceano enche os meus olhos
[ de lágrimas.
SONETO PURO
Fique o amor onde está; seu movimento
nas equações marítimas se inspire
para que, feito o mar, não se retire
das verdes áreas de seu vão lamento.
Seja o amor como a vaga ao vago intento
de ser colhida em mãos; nela se mire
e, fiel ao seu fulcro, não admire
as enganosas rotações do vento.
Como o centro de tudo, não se afaste
da razão de si mesmo, e se contente
em luzir para o lume que o ensolara.
Seja o amor como o tempo — não se gaste
e, se gasto, renasça, noite clara
que acolhe a treva, e é clara novamente.
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