Número 139 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 19 de outubro de 2005 

«Seja sempre um poeta, mesmo em prosa.» (Charles Baudelaire)
 


Lêdo Ivo


Caros,

Poeta, romancista e ensaísta, Lêdo Ivo é alagoano de Maceió, onde nasceu em 1924. Residente no Rio de Janeiro desde 1943, estreou em poesia com a coletânea As Imaginações (1944). De lá para esta data, seguiu-se uma numerosa fileira de títulos em vários gêneros. Os de poesia, 23 livros, foram reunidos no volume Poesia Completa 1940-2004 (Topbooks).


Historicamente, Lêdo Ivo é incluído na chamada Geração de 45, da qual é um dos nomes mais conhecidos. Com 60 anos de exercício poético, seus textos abraçam formas e temas variados ao longo do tempo. Entre os traços que perpassam quase toda a sua trajetória estão as imagens marítimas, como se pode observar em "Cemitério dos Navios", e uma persistente influência do simbolismo. Todos os poemas que selecionei para este boletim enquadram-se nessa vertente lírica.

Nos agitados anos 60, o poeta também aderiu à chamada poesia participante, escrevendo versos de marcado conteúdo social. Mas, como quase sempre acontece nesses casos, os poemas dessa fase não estão entre o que há de melhor em sua produção. Lêdo Ivo é membro da Academia Brasileira de Letras.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



 

Sob o vôo das gaivotas

Lêdo Ivo

 



CEMITÉRIO DOS NAVIOS

Aqui os navios se escondem para morrer.

Nos porões vazios, só ficaram os ratos
à espera da impossível ressurreição.

E do esplendor do mundo sequer restou
o zarcão nos beiços do tempo.

O vento raspa as letras
dos nomes que os meninos soletravam.

A noite canina lambe
as cordoalhas esfarinhadas

sob o vôo das gaivotas estridentes
que, no cio, se ajuntam no fundo da baía.

Clareando madeiras podres e águas estagnadas,
o dia, com o seu olho cego, devora o gancho

que marca no casco as cicatrizes
do portaló que era um degrau do universo.

E a tarde prenhe de estrelas
inclina-se sobre a cabine onde, antigamente,

um casal aturdido pelo amor mais carnal
erguia no silêncio negras paliçadas.

Ó navios perdidos, velhos surdos
que, dormitando, escutam os seus próprios apitos

varando a neblina, no porto onde os barcos
eram como um rebanho atravessando a treva!



O CHAMAMENTO ETERNO

Como a formiga que sobe à cama de um homem
atraída pelo açúcar da urina represada nas lagunas da noite
assim subiste até mim e me chamaste.

A morte é uma velha idiota, uma formiga tonta
que se embebeda com a urina dos homens.



OS UTENSÍLIOS

No galpão guardamos as enxadas enferrujadas.
E lá elas esperam a morte, como os velhos nos
                                                        [ asilos.

Esta foice não está mais afiada. Este ancinho
já não sabe limpar o cisco do pomar.

Mas não nos desfazemos de nada — é a nossa lei.
No depósito escuro onde repousam escorpiões
está até a chave que não abre nenhuma porta.



ASILO SANTA LEOPOLDINA

Todos os dias volto a Maceió.
Chego nos navios desaparecidos, nos trens
                                             [ sedentos,
[nos aviões cegos que só aterrizam ao anoitecer.
Nos coretos das praças brancas passeiam
                                             [ caranguejos.
Entre as pedras das ruas escorrem rios de açúcar
fluindo docemente dos sacos armazenados nos
                                             [ trapiches
e clareiam o sangue velho dos assassinados.
Assim que desembarco tomo o caminho do
                                             [ hospício.
Na cidade em que meus ancestrais repousam em
                                      [cemitérios marinhos
só os loucos de minha infância continuam vivos e
                                      [à minha espera.
Todos me reconhecem e me saúdam com
                                      [ grunhidos
e gestos obscenos ou espalhafatosos.
Perto, no quartel, a corneta que chia
separa o pôr-do-sol da noite estrelada.
Os loucos langorosos dançam e cantam entre
                                      [ as grades.
Aleluia! Aleluia! Além da piedade
a ordem do mundo fulge como uma espada.
E o vento do mar oceano enche os meus olhos
                                      [ de lágrimas.



SONETO PURO

Fique o amor onde está; seu movimento
nas equações marítimas se inspire
para que, feito o mar, não se retire
das verdes áreas de seu vão lamento.

Seja o amor como a vaga ao vago intento
de ser colhida em mãos; nela se mire
e, fiel ao seu fulcro, não admire
as enganosas rotações do vento.

Como o centro de tudo, não se afaste
da razão de si mesmo, e se contente
em luzir para o lume que o ensolara.

Seja o amor como o tempo — não se gaste
e, se gasto, renasça, noite clara
que acolhe a treva, e é clara novamente.
 

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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005

Lêdo Ivo
•  In Antologia Poética
   
Ediouro, Rio de Janeiro, s/ data