René Char (foto de Man Ray)
Caros amigos,
Nesta edição, o boletim poesia.net completa três anos em circulação. Por
aqui já passaram pelo menos uma centena e meia de poetas. O cardápio tem sido
bem variado nesta ceia poética semanal. A regra da casa é servir iguarias das
mais diferentes origens temporais, geográficas e estilísticas. De Drummond a
Pessoa. De William Carlos Williams a Jacques Prévert. De Alphonsus de Guimaraens
(pai e filho) a Affonso Manta. De Maiakóvski a Cecília Meireles. Do quinhentista
Sá de Miranda aos juveníssimos Paulo Ferraz, Virna Teixeira e João de Moraes
Filho. Clássicos e vanguardistas. Concretos e
abstratos. Homens, mulheres, velhos, moços. Poetas.
Na edição de hoje, o boletim é servido com textos de René Char (1907-1988), um
dos mais importantes poetas franceses no século XX. Char aderiu ao movimento
surrealista em 1929. Naquele momento, enquanto os grandes
nomes do grupo — Louis Aragon, Paul Éluard, André Breton — já
eram homens maduros, Char contava apenas 22 anos. Mas sua permanência no
grupo durou somente até 1934. A partir daí sua poesia tomou rumos mais pessoais,
embora tenha guardado, até o fim, certas marcas do surrealismo.
Para o destacado crítico francês Maurice Blanchot, os escritos de Char são
uma "revelação poética". Nascido na Provença, o poeta conserva em seus versos
(muitas vezes em forma de prosa) o mundo da terra, dos rios, dos animais. Mas
seu lirismo não é de fácil leitura. Por causa de suas metáforas enigmáticas, há
quem o acuse de abusar do hermetismo para seduzir leitores universitários ciosos
de vanguardismos e mistérios. Exagero. O certo é que Char escreveu algumas das
páginas mais interessantes da poesia contemporânea.
Outro aspecto importantíssimo da biografia de Char foi sua ativa participação na
Resistência antinazista, na qual atuou com o nome de guerra de capitão
Alexandre. Seu livro Feuillets d'Hypnos (Folhas de Hipnos), de 1946,
relata a experiência nos anos da guerra. Por sua atuação, Char foi nomeado
Cavaleiro da Legião de Honra e Oficial das Artes e Letras. Também recebeu a
Medalha condecorado com a Medalha da Resistência e a Cruz de Guerra.
Pouco se pode encontrar da poesia de Char em livrarias brasileiras. No momento,
aparentemente só existe uma coletânea bilíngüe, O Nu Perdido e Outros Poemas,
traduzida pelo poeta Augusto Contador Borges.
Um abraço de aniversário,
Carlos Machado
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Nas ruas da cidade
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René Char |
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CONSOLAÇÃO
Nas ruas da cidade caminha o meu amor. Pouco importa aonde vai no tempo
dividido. Já não é meu amor, todos podem falar-lhe. Ele já não se recorda. Quem
de fato o amou?
Procura o seu igual no voto dos olhares. O espaço que percorre é a minha
fidelidade. Ele desenha a esperança e ligeiro despede-a. Ele é preponderante sem
tomar parte em nada.
Vivo no seu abismo como um feliz destroço. Sem que ele saiba, a minha solidão é
o seu tesouro. No grande meridiano onde inscreve o seu curso é a minha liberdade
que o escava.
Nas ruas da cidade caminha o meu amor. Pouco importa onde vai no tempo dividido.
Já não é meu amor, todos podem falar-lhe. Ele já não se recorda. Quem de fato o
amou e de longe o ilumina para que não caia?
ALLÉGEANCE
Dans les rues de la ville il y a mon amour. Peu importe où il va dans le
temps divisé. Il n'est plus mon amour, chacun peut lui parler. Il ne se
souvient plus; qui au juste l'aima?
Il cherche son pareil dans le voeu des regards. L'espace qu'il parcourt est ma
fidélité. Il dessine l'espoir et léger l'éconduit. Il est prépondérant sans
qu'il y prenne part.
Je vis au fond de lui comme une épave heureuse. A son insu, ma solitude est son
trésor. Dans le grand méridien où s'inscrit son essor, ma liberté le creuse.
Dans les rues de la ville il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps
divisé. Il n'est plus mon amour, chacun peut lui parler. Il ne se souvient plus;
qui au juste l'aima et l'éclaire de loin pour qu'il ne tombe pas?
De Fureur et Mystère (1962)
A VIDRAÇA
Chuvas puras, esperadas mulheres,
O rosto que lavais,
De vidro condenado aos sofrimentos,
É o rosto do revoltado;
O outro, fremindo ao fogo da lareira,
É a vidraça do afortunado.
Vos quero bem, ó dúplice mistério,
A um e outro estou ligado;
Dói-me tanto e me sinto bem.
LE CARREAU
Pures pluies, femmes attendues,
La face que vous essuyez,
De verre voué aux tourments,
Est la face du révolté;
L’autre, la vitre de l’heureux,
Frissone devant le feu de bois.
Je vous aime mystères jumeaux,
Je touche à chacun de vous;
J’ai mal et je suis léger.
FIZESTE BEM EM PARTIR,
ARTHUR RIMBAUD!
Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Teus dezoito anos refratários à amizade,
à malevolência, à bobeira dos poetas de Paris, assim como ao zunzum de abelha
estéril de tua família ardenesa um pouco doída, fizeste bem espalhá-los aos
quatro ventos, em jogá-los sob a lâmina de sua guilhotina precoce. Tiveste razão
em abandonar o bulevar dos preguiçosos, os botequins, os mija-liras, pelo
inferno das feras, pelo comércio dos espertos e o bom-dia dos simples.
Este impulso absurdo do corpo e da alma, esta bala de canhão que explode seu
alvo, sim, é isso mesmo a vida de um homem! Não se pode, indefinidamente, saindo
da infância, estrangular seu próximo. Se os vulcões mudam pouco de lugar, sua
lava percorre o grande vazio do mundo levando virtudes que cantam em suas
feridas.
Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Ainda há quem creia, sem provas, que
contigo a felicidade é possível.
TU AS BIEN FAIT DE PARTIR,
ARTHUR RIMBAUD!
Tu as bien fait de partir, Arthur Rimbaud! Tes dix-huit ans réfractaires à
l'amitié, à la malveillance, à la sottise des poètes de Paris ainsi qu'au
ronronnement d'abeille stérile de ta famille ardennaise un peu folle, tu as bien
fait de
les éparpiller aux vents du large, de les jeter sous le couteau de leur précoce
guillotine. Tu as eu raison d'abandonner le boulevard des paresseux, les
estaminets des pisse-lyres, pour
l'enfer des bêtes, pour le commerce des rusés et le bonjour des simples.
Cet élan absurde du corps et de l'âme, ce boulet de canon qui atteint sa cible
en la faisant éclater, oui, c'est bien là la vie d'un homme! On ne peut pas, au
sortir de l'enfance, indéfiniment étrangler son prochain. Si les volcans
changent peu de place, leur lave parcourt le grand vide du monde et lui apporte
des vertus qui chantent dans ses plaies.
Tu as bien fait de partir, Arthur Rimbaud! Nous sommes quelques-uns à croire
sans preuve le bonheur possible avec toi.
De Fureur et Mystère (1962)
FREQÜÊNCIA
O dia todo servindo ao homem, o ferro aplicou o torso sobre a lama inflamada da
forja. Com o tempo, as curvas gêmeas de suas pernas rebentaram a fina noite do
metal espremido sob a terra.
Sem pressa, o homem deixa o trabalho. Mergulha uma última vez os braços no
flanco sombrio do rio. Agarrará enfim o bordão gelado das algas?
FRÉQUENCE
Tout le jour, assistant l'homme, le fer a appliqué son torse sur la boue
enflammée de la forge. A la longue, leus jarrets jumeaux ont fait éclater la
mince nuit du métal à la étroit sous la terre.
L'homme sans se hâter
quitte le travail. Il plonge une dernière fois ses bras dans le flanc assombri
de la rivière. Saura-t-il enfin saisir le bourdon glacé des algues?
De Fureur et Mystère (1962)
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