João Guimarães Rosa
Caros amigos,
Este é o último boletim do ano — uma edição especial. Pela segunda vez na
história deste semanário (a outra foi com Cervantes e
Dom Quixote), a foto aí em cima não mostra um autor tido à primeira vista
como poeta. De fato, João Guimarães Rosa (1908-1967), um de nossos poucos
escritores de alcance universal, é celebrado como o contista de Sagarana,
o novelista de
Corpo de Baile e sobretudo como o magnífico romancista de Grande Sertão:
Veredas, obra que completa 50 anos agora em 2006.
Mas Guimarães Rosa começou de fato como poeta. Em 1936, ele venceu um concurso
promovido pela Academia Brasileira de Letras com Magma, uma coletânea de
poemas. Embora premiado, ele não quis publicar o livro, que só veio à luz
postumamente, em 1997.
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Detesto usar a palavra gênio, porque muito se abusa dela nos meios de
comunicação. Qualquer um que tenha produzido um texto, uma canção ou um quadro
assim-assim é logo carimbado como gênio. Contudo, no caso de João Guimarães
Rosa, abro mão das reservas. Em relação a ele, não se pode usar um adjetivo
menos entusiasmado do que "genial". Verdadeiramente, ele é um mago das palavras.
Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG). Aos seis anos, começou sozinho a
estudar francês. Em 1917, com a chegada de um frade holandês à cidade, continuou
o aprendizado de francês e, de quebra, iniciou-se no holandês. Estudou, depois,
em Belo Horizonte, no Colégio Arnaldo, dirigido por padres alemães. Foi o
suficiente para que ele também se interessasse pelo alemão.
Numa entrevista, Guimarães Rosa disse, certa vez: "Falo: português, alemão,
francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco,
holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos
alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio,
do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do
dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que
estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão
mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por
divertimento, gosto e distração."
Em 1930, já casado com Lígia Cabral Penna, Rosa forma-se em medicina na
Universidade de Minas Gerais. Vai exercer a profissão na cidade de Itaguara,
então pertencente ao município de Itaúna (MG). O casamento, que lhe deu duas
filhas, durou pouco. Achando-se pouco vocacionado para a medicina, Rosa presta
concurso para o Itamarati e, em 1938, é nomeado cônsul adjunto em Hamburgo,
Alemanha.
Na Europa, conhece Aracy Moebius de Carvalho, que se tornaria sua segunda
esposa. Durante a guerra, várias vezes o escritor escapou da morte. Uma vez, ao
voltar para casa, encontrou-a destruída por um bombardeio. Como diplomata, Rosa
facilitou a fuga de judeus perseguidos pelo nazismo. Dava-lhes o visto de
entrada no Brasil, sem mencionar a religião do portador. Nessa empreitada, o
escritor contou com a ajuda da esposa Aracy.
A concessão dos vistos representava uma atitude temerária, tanto em relação aos
nazistas como ao governo brasileiro. Como se sabe, a ditadura getulista nutria
francas simpatias pelo nazi-fascismo até meados da guerra. Basta lembrar que, em
1936, Vargas entregou aos nazistas a alemã Olga Benário Prestes, judia e
comunista, sabendo que isso era o mesmo que condená-la à morte.
Em reconhecimento à ajuda de Guimarães Rosa e Aracy, o governo de Israel, em
1985, deu o nome do casal a um bosque em Jerusalém. Segundo Aracy, que esteve
presente à cerimônia de inauguração do bosque, o marido não gostava de tocar
nesse assunto. Tinha pudor de falar de si mesmo.
Aracy e
Guimarães Rosa
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Agora, Guimarães Rosa, o escritor. Sagarana sai em 1946. Dez anos depois,
vêm a público Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile. Em seguida,
vêm
Primeiras Estórias (1962) e Tutaméia - Terceiras Estórias (1967).
Vale destacar que não houve as segundas estórias.
O autor, que se considerava um contador de "estórias", transforma em
ficção muito do que viu e ouviu na infância, durante sua experiência como médico
do interior e em suas obstinadas pesquisas sobre bichos, plantas, lugares e
especialmente pessoas: a gente rústica dos sertões, com suas paixões, crenças e
linguagem.
Rosa foi eleito para a Academia Brasileira de
Letras em agosto de 1963. Mas, supersticioso, ele adiou a posse o quanto pôde.
Dizia que não suportaria a emoção. De fato, ele só vestiu o fardão em 16 de
novembro de 1967. E morreu daí a três dias, vítima de infarto. Foram publicados
ainda dois livros póstumos de Rosa: Estas Estórias (1969) e Ave,
Palavra (1970).
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João Guimarães Rosa tornou-se um caso único na literatura brasileira. Além
causar enorme impacto no Brasil, seus livros conquistaram o mundo. Há traduções
de obras rosianas para dezenas de idiomas estrangeiros. Ele —
que escreveu: "o sertão está em toda parte" —
tornou-se realmente um sertanejo universal.
Não há a menor dúvida de que Guimarães Rosa enquadra-se na categoria dos
inventores. Conforme escreve o poeta Claudio Willer no ensaio "Guimarães Rosa e
Sagarana":
"ele não foi apenas um pesquisador, reproduzindo no texto o que havia colhido em
suas pesquisas, porém, muito mais, um inventor, um verdadeiro criador de
linguagem, com novas palavras e originais articulações sintáticas. Como tal, um
poeta (...)".
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Os textos ao lado começam com o poema "Um chamado João", uma homenagem de Carlos
Drummond de Andrade, publicada três dias após a morte de Guimarães Rosa. Em
seguida, vem um pouco da criação rosiana. Primeiro, o poema "Reportagem", de seu
livro de não-estréia, Magma. Depois, uma seção de prosa, que se abre com
o trecho inicial do conto "Sarapalha" (de Sagarana). Fecho a amostra com
frases soltas, colhidas em Grande Sertão: Veredas.
Um abraço,
Carlos Machado
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poesia.net entra
em recesso
A todos os leitores do poesia.net desejo um ano novo
com muita saúde, paz e poesia.
Durante o mês de janeiro, o boletim não circulará. Espero
retornar em fevereiro para nosso encontro semanal.
FELIZ 2006!
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Um sertanejo universal
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João Guimarães Rosa |
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•••••• [SOBRE JOÃO] ••••••
UM CHAMADO JOÃO
Carlos Drummond de Andrade
João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?
Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?
Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia nome,
curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?
Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?
Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.
(publicado originalmente no Correio da Manhã, em 22/11/1967, três dias
após a morte de Guimarães Rosa)
Casa onde nasceu o escritor, hoje Museu Casa de
Guimarães Rosa, em Cordisburgo, MG.
•••••• [DE JOÃO] ••••••
REPORTAGEM
O trem estacou, na manhã fria,
num lugar deserto, sem casa de estação:
a parada do Leprosário...
Um homem saltou, sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou...
Todos os passageiros olharam ao redor,
com medo de que o homem que saltara
tivesse viajado ao lado deles...
Gravado no dorso do bauzinho humilde,
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo
[ Socorro...
O trem se pôs logo em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio...
Eu quis chamar o homem, para lhe dar um
[ sorriso,
mas ele ia já longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só
[ tem costas...
SARAPALHA
(trecho inicial)
Tapera de arraial. Ali, na beira do rio Pará, deixaram
largado um povoado inteiro: casas, sobradinho, capela; três vendinhas, o chalé e
o cemitério; e a rua, sozinha e comprida, que agora nem mais é uma estrada, de
tanto que o mato a entupiu.
Ao redor, bons pastos, boa gente, terra boa para o arroz. E o
lugar esteve nos mapas, muito antes da malária chegar.
Ela veio de longe, do São Francisco. Um dia, tomou caminho,
entrou na boca aberta do Pará, e pegou a subir. Cada ano avançava um punhado de
léguas, mais perto, mais perto, pertinho, fazendo medo no povo, porque era sezão
da brava — da "tremedeira que não desamontava" — matando muita gente.
— Talvez que até aqui ela não chegue... Deus há-de...
Mas chegou; nem dilatou para vir. E foi um ano de tristezas.
Em abril, quando passaram as chuvas, o rio — que não tem
pressa e não tem margens, porque cresce num dia mas leva mais de mês para
minguar — desengordou devagarinho, deixando poços redondos num brejo de ciscos:
troncos, ramos, gravetos, coivara; cardumes de mandis apodrecendo; tabaranas
vestidas de ouro, encalhadas; curimatãs pastando barro na invernada; jacarés, de
mudança, apressados; canoinhas ao seco, no cerrado; e bois sarapintados, nadando
como búfalos, comendo o mururê-de-flor-roxa flutuante, por entre as ilhas do
melosal. Então, houve gente tremendo, com os primeiros acessos da sezão.
— Talvez que para o ano ela não volte, vá s'embora...
Ficou. Quem foi s'embora foram os moradores: os primeiros
para o cemitério, os outros por aí afora, por este mundo de Deus.
PÍLULAS DO GRANDE SERTÃO
Coração de gente — o
escuro, escuros.
Quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade.
Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo
o mal por principiar.
No sistema de jagunços, amigo era o braço, e o aço!
Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do
igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de
estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou — amigo — é que a
gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é.
O amor? Pássaro que põe ovos de ferro.
Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores
perguntas.
A colheita é comum, mas o capinar é sozinho.
O diabo é às brutas; mas Deus é traiçoeiro!
O diabo na rua, no meio do redemunho.
O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo,
o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o
Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga,
O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois, não existe! E se não existe, como é
que se pode se contratar pacto com ele?
Quem muito se evita, se convive.
Julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado.
O que lembro, tenho.
Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.
Quem mói no asp'ro não fantaseia.
Quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa
própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o
sentir da gente.
Vingar... é lamber, frio,
o que outro cozinhou quente demais.
Quem sabe do orgulho, quem sabe da loucura alheia?
Ser chefe — por fora um pouquinho amargo; mas, por dentro, é risonhas flores.
Um chefe carece de saber é
aquilo que ele não pergunta.
Comandar é só assim: ficar quieto e ter mais coragem.
Toda saudade é uma espécie de velhice.
Riu de me dar nojo. Mas
nojo medo é, é não?
Um sentir é do sentente, mas outro é do sentidor.
Tudo é e não é.
Mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir.
Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que
venha armado!
O sertão é do tamanho do mundo.
Sertão é dentro da gente.
O sertão é sem lugar.
O sertão não tem janelas, nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito
governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa.
O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena.
O sertão é uma espera enorme.
Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles estão
sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria
e as misérias todas.
A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel
do desespero.
A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem
as caras todas do Cão e as vertentes do viver.
Manter firme uma opinião, na vontade do homem, em mundo transviável tão grande,
é dificultoso.
Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque
aprender-a-viver é que é o viver mesmo.
Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de
opiniães...
Feito flecha, feito fogo, feito faca.
Vi: o que guerreia é o
bicho, não é o homem.
Até que, um dia, eu estava repousando, no claro estar, em rede de algodão
rendada. Alegria me espertou, um pressentimento. Quando eu olhei, vinha vindo
uma moça. Otacília. // Meu coração rebateu, estava dizendo que o velho era
sempre novo. Afirmo ao senhor, minha Otacília ainda se orçava mais linda, me
saudou com o salvável carinho, adianto de amor.
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