Número 151 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006 

«Há muitas maneiras de dizer a mesma coisa em prosa; só existe uma em poesia.» (Octavio Paz)
 


Helena Ortiz


Caros,

Nascida em Pelotas-RS, em 1947, Helena Ortiz é jornalista, radicada no Rio de Janeiro. Poeta e contista, criou e dirigiu, entre 1999 e 2002, o projeto Panorama da Palavra, uma mostra semanal de poesia. O projeto deu origem a um jornal mensal homônimo, que tem edição em papel e na internet (www.panoramadapalavra.com.br), e também à Editora da Palavra, seu braço editorial.

Helena já publicou cinco livros de poesia. Estreou em 1995 com Pedaço de Mim. Em seguida, vieram Margaridas (1997); Azul e Sem Sapatos (1997); Em Par  (2001); e Sol Sobre o Dilúvio (2005). Destes dois últimos volumes foram extraídos todos os poemas transcritos ao lado.

Um dos traços centrais da poesia de Helena Ortiz é a marca do dia-a-dia. Os versos, sem floreios, são curtos e avessos a expansões retóricas. "o fracasso não admite réplica / nem retórica", avisa o poema "O Último Dia". O leitor percebe que o texto faz referência a algum fato cotidiano. Mas, na maioria das vezes, não é capaz de identificar exatamente do que se trata. Talvez essa indefinição do contexto ajude a tornar o clima dos poemas mais sufocantes. É o que se nota nos últimos versos de "O Tempo Justo": "um barulho de carroça leva os mortos / que perderam na calçada seus dobrões / lá se vão. mãos vazias. corpos vãos".

Em "Condição Humana" está outro exemplo de cotidianidade doída. "visto preto e meu marido / é vivo", diz a mulher que assume as palavras do poema, traindo uma convivência familiar dilacerada, doentia. Marido e mulher não se toleram: "juntos / só colocamos // sal nas feridas". Terrivel.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado




NOTA

A poeta Helena Ortiz faleceu em fevereiro de 2019.


                 
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POESIA.NET NO MARANHÃO

Leitor deste boletim, o jornalista Zema Ribeiro, que assina a coluna "Diário Cultural" no jornal Diário da Manhã, de São Luís MA, publicou na última quinta-feira, dia 9/2/2006, a seguinte nota a propósito do poesia.net n. 150:

Navegar é preciso!

O público leitor de poesia, mundialmente falando, sempre foi pequeno. É fato! Quase ninguém se interessa. Mas uma bela dica é o site Poesia.Net. Editado por Carlos Machado, o site tem atualização semanal, sempre às quartas-feiras. Aos leitores interessados, é possível cadastrar um endereço de e-mail e receber o boletim. Sem preconceitos, o editor aborda poesia: famosos e desconhecidos, nacionais e estrangeiros. Na página, é possível encontrar todos os poetas que já foram alvo das edições. O semanário virtual completou, quarta-feira passada, cento e cinqüenta edições. Vale(m) a(s) leitura(s)!


Agradeço ao Zema Ribeiro a referência simpática ao boletim.

Sal nas feridas

Helena Ortiz

 


O ÚLTIMO DIA

o desejo do rei: a visão dos píncaros
ouvir cantar o pássaro da glória
mas agora
onde estarão todos pergunta o silêncio
nos corredores do palácio
ninguém virá para dizer: acabou
o fracasso não admite réplica
nem retórica pensa o rei enquanto
tira as calças e repara
no espelho
que a vaidade é infiel
e a glória
muito mais
que um par de pernas claudicantes



ANTE-SALA

a noite passa lenta e fluorescente
purgam feridas
sobre a cama metálica
equipada para gestos mínimos
o corpo é vasto para delírios
e flutua inflado
pelos limites do quarto
onde se esgota
úmido
cada vez mais longe
da porta



O TEMPO JUSTO

os remédios alerta na gaveta
o relógio ainda é o de parede
ruído solitário a ruminar

o ronco é o gemido da carne
a vida vacila e volta
trazendo vultos no pico da febre

um barulho de carroça leva os mortos
que perderam na calçada seus dobrões
lá se vão. mãos vazias. corpos vãos



6 DE MAIO

estávamos felizes em pleno domingo
a certeza próxima do outro
comida no fogo roupa
já passada
casa nem tão limpa
sapatos num canto
projetos alinhavados

a notícia chegou pelo telefone
apagou o fogo
separou nossos sapatos

notícia maior que a vida

 

DILÚVIO

as águas cobrem as ruas
arrastando tudo

do outro lado junto ao muro
minha mãe. só os olhos
pedem que a recolha

tenho força de mil cavalos
e aquela flor
contra a corrente

tomo minha mãe nos braços
ela se encolhe
aqueço-a em meu colo
e devolvo-lhe o leite



CONDIÇÃO HUMANA

visto preto e meu marido
é vivo

sou seu lençol
mãe de seu filho ausente

lavo seus colarinhos
não dormimos juntos

juntos
só colocamos

sal nas feridas
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Helena Ortiz
•  "O Último Dia", "Ante-sala", "O Tempo Justo"
    In Em Par   
    Editora da Palavra, Rio de Janeiro, 2001
•  "6 de Maio", "Dilúvio", "Condição Humana"
    In Sol Sobre o Dilúvio
    Editora da Palavra, Rio de Janeiro, 2005