Número 152 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

«Caronte, juntos agora remaremos: / eu com a música, tu com os remos.» (Cecília Meireles)
 


André Dick


Caros amigos,

Nascido em Porto Alegre em 1976, André Dick é poeta e ensaísta. Estreou em 2002 com o livro de poemas Grafias. Dois anos depois, publicou Papéis de Parede, volume destacado como "referência especial" no Prêmio Cidade de Juiz de Fora - 2003. André Dick também organizou, em parceria com Fabiano Calixto, o livro A Linha Que Nunca Termina (Lamparina Editora, 2004), uma coletânea de ensaios sobre o trabalho de Paulo Leminski.

Para o também poeta e ensaísta Ronald Polito, a criação poética de André Dick, em Grafias, tem traços que a aproximam do trabalho de Tarso de Melo (poesia.net n. 31). É verdade. Mas, na minha opinião, o parentesco dos versos desse jovem gaúcho é maior ainda com o estilo enxuto de Virna Teixeira (poesia.net 142). Ronald Polito escreve: "André Dick destila uma experiência microscópica, quase cotidiana, com os pequenos elementos de seu entorno, como que numa anotação intermitente, a modo de diário, de suas diminutas vivências com as coisas e consigo mesmo".

Descontada, talvez, a referência à anotação intermitente, o mesmo trecho poderia ser dito a respeito da poesia de Virna. A concisão é um ponto comum no modus dicendi dos dois poetas, especialmente no André Dick de Grafias. É o caso, por exemplo, de poemas como "Num Quadro de Edward Hopper" ou "Manhã", os dois primeiros da seleção ao lado.

Em Papéis de Parede, o segundo livro, as semelhanças são menores. Nele, como se pode ler no poema "Composição do Objeto", as frases são mais discursivas, embora, no conjunto dos poemas, se mantenha certa visualização fragmentária. Aliás, sintomaticamente, "Fragmentos" é o título de um dos poemas do livro.

Um abraço,

Carlos Machado

 

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Fragmentos do cotidiano

André Dick

 



NUM QUADRO DE EDWARD HOPPER


a vida destrói
um sol
quase esquecido
numa tela
de hopper:

o posto de gasolina
abandonado,

onde um senhor,
talvez o dono,

em seu ócio,
rega a grama

com sua bomba
de petróleo.



MANHÃ


quando chega
a manhã,

o lago
também reflete

estantes

(a palavra clara
dentro do seu nome),

como se vidros

sentissem saudade
depois que passa

a paisagem



SOMBRAS


possivelmente
sombras se esquecem
da luz:

curva rente ao rio,
as luzes acesas
do edifício


através dele
o sol quase
deságua lento
no fim da tarde



ALGUMA PALAVRA


alguma palavra,
fragmento, saudade,
cheiro que,

quando a porta
se fecha, apenas
deixa de sê-lo,

a não ser

enquanto existe

costuma durar,

ficando, às vezes,
na roupa, no cabelo,
na manga da camisa

como cheiro de cigarro
sem a pretensão
de existir.



COMPOSIÇÃO DO OBJETO


ao se aproximar do objeto,
o olhar o desconstrói
e passa a fazer parte
(quase um anexo dele)
em sua distância

na hora de se despedir
(a despedida nunca é igual),
apenas se desprende
do avanço feito
para dentro da cerâmica
isolada de atenção

o mesmo gesto então sugere
(com a calma de um aroma)
uma lenta e discursiva
corrente de proximidade,
como de fato ocorre
pro desgaste e pressa

do choque que existe
desta simples vontade
em fazer parte do gesto
que a desenha antes
de sedimentá-la
ou fazê-la desaparecer

parece buscar
não a corrente de ar
mas a espinha dorsal
do gesto que retoma
as mãos solitárias
que podem lhe dar espaço

a forma imprecisa
de uma matéria nova
moldada com barro e água
sem que os olhos
precisem definir a mistura
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006


André Dick
• "Num Quadro de Edward Hopper", "Manhã",
  "Sombras", "Alguma Palavra"

  In Grafias
  Instituto Estadual do Livro/RS, Porto Alegre, 2002
• "Composição do Objeto"
  In Papéis de Parede
  Funalfa/7 Letras, Juiz de Fora/Rio de Janeiro, 2004