Armando Freitas Filho
Caros amigos,
Nascido no Rio de Janeiro em 1940, o poeta Armando Freitas Filho já conta quatro
décadas de produção literária. Todo o seu percurso poético até agora
está reunido no volume Máquina de Escrever (2003). Nessa "poesia reunida
e revista", Freitas Filho inclui desde Palavra, seu livro de estréia, de
1963, até Numeral/Nominal, de 2003.
Segundo conta o poeta, dos treze livros enfeixados em Máquina de Escrever,
somente dois — Dual (1966) e Marca
Registrada (1970) — foram substancialmente
cortados e modificados. Não por acaso, esses dois livros são
exatamente aqueles que o poeta aponta como associados à poesia práxis, o
movimento de vanguarda ultra-rival da poesia concreta,liderado pelo paulista
Mário Chamie.
A partir dos livros seguintes — De Corpo Presente
(1975) e À Mão Livre (1979) —, Armando Freitas
Filho aproxima-se mais do racionalismo de João Cabral de Melo Neto. O poeta
também manteve intensa convivência com os poetas cariocas
da chamada "geração marginal" e parece ter incorporado um pouco da dicção
coloquial e prosaica desses poetas. Isso pode ser constatado em livros como À
Mão Livre, Longa Vida (1982) e 3x4 (1985). Aí também se
destaca o erotismo sem véus plasmado pelo autor, especialmente no primeiro
livro.
Neste boletim, transcrevemos poemas de três títulos do autor: Palavra, a
obra inaugural,
Números Anônimos, de 1994, e Numeral/Nominal, da produção mais
recente do poeta. Conforme sugere o título, este último volume divide-se em duas
partes, "Numeral" e "Nominal". Na primeira, os poemas são batizados com números
e na outra, com títulos. Ao lado você pode ler os poemas "16" e "23", exercícios
metalingüísticos que se propõem a definir o ato de escrever. Ambos os textos
começam com "Escrever é..."
Da parte "Nominal" vem o poema "Manual da Máquina CDA", uma tentativa cabralina
de decifrar os mecanismos de Carlos Drummond de Andrade. Esse "Manual" faz parte
de uma
seqüência de poemas dedicados a Drummond, iniciada por um que se chama "CDA no
coração", no qual Armando Freitas Filho declara: "Drummond é Deus. Pai
inalcançável. / Não reconhece os filhos. A mão ossuda / e dura, de unhas
rachadas, não abençoa: / escreve, sem querer, contudo, a vida / de cada um,
misturada com a sua."
Os dois próximos poemas foram extraídos de Números Anônimos (1994).
Nesses textos o poeta se desloca em "sucessivos ônibus, táxis, metrô". No meio
de uma cacofonia de samba, funk e fuzis AR-15, surge uma "cidade engatilhada". A
tragédia brasileira, em sua versão Rio de Janeiro, atravessa o ritmo do poeta.
Para encerrar a amostra, comparece o poema "Corpo". Esta, aliás, é uma das
palavras-chave do poeta, pois perpassa com insistência toda a sua obra. O corpo,
esse "acrobata enredado / em clausura de pele", ou "engenho de febre / sono e
lembrança".
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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OS SAPATOS DE ORFEU,
A BIOGRAFIA DE DRUMMOND
Saiu agora, pela Editora Globo, uma nova edição de Os Sapatos de Orfeu,
do jornalista e escritor mineiro José Maria Cançado. Esse título é, até agora, a
única biografia disponível do poeta Carlos Drummond de Andrade. Uma leitura que
deve fazer parte da cesta básica de qualquer drummondiano que se preze.
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A edição original (esq.) e a nova |
Esgotado há anos, o livro apareceu originalmente
em 1993, pela extinta Editora Scritta. José Maria Cançado é um pesquisador que
também já produziu o estudo Memórias Videntes do Brasil – A Obra de
Pedro Nava, publicado pela UFMG. Ainda sobre Os Sapatos de Orfeu:
pessoalmente, gosto mais da capa antiga. Mas existir em circulação uma biografia
do mestre itabirano já é excelente.
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A cidade engatilhada
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Armando Freitas Filho |
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NUMERAL
16
Para Mário Rosa
Escrever é arriscar tigres
ou algo que arranhe, ralando
o peito na borda do limite
com a mão estendida
até a cerca impossível e farpada
até o erro — é rezar com raiva.
14 VIII 2001
23
Escrever é riscar o fósforo
e sob seu pequeno clarão
dar asas ao ar — distância, destino
segurando a chama contra
a desatenção do vento, mantendo
a luz acesa, mesmo que o pensamento
pisque, até que os dedos se queimem.
10 XII 2001
De Numeral/Nomimal, 2003
MANUAL DA MÁQUINA CDA
A máquina é de pedra e pensamento.
Funciona sem água, deslizando
seu lençol de laje e lembrança
aberto e desperto por natureza.
Tem por motor o atrito, a tração
a alavanca que levanta quem lê
e o modela, diferente, a cada passada
pois se faz também diversa:
novos perfis que se enfrentam
assimétricos, e que não esperam
o encaixe certo, feito à regua
mas o impossível, irregular, sem
efes-e-erres, com recortes irritados
se aproximando, como no boxe —
através do choque, onde se juntam —
íntimos, podendo parecer ternos
apesar dos dentes, roldanas, o amor
arranca, em chão de escorpião.
Quando revista, de perto, por dentro
a máquina — que não se passa a limpo —
se compreende um pouco do engenho
do mecanismo de suas linhas partidas.
De Numeral/Nomimal, 2003
[FURO O SINAL VERMELHO]
Furo o sinal vermelho
que não me estanca
sangrando a seta do lado esquerdo
me enfio por agulhas, gargalos
gargantas, o mar está à margem
tem pressa, mas não sai do lugar
engarrafado, e ainda que felino
enferruja em frente à praia
enquanto rodo o Rio todo e tomo
sucessivos ônibus, táxis, metrô
e cada dia é irreparável
o corpo não tem férias
vai no arrastão, com a roupa da hora
sempre ao alcance de balas além
não fica em nenhuma parada
não salta, passa do ponto
queima a inflamável vida
enquadrado pelo sol, carburante
vencendo túneis
nadando no seu próprio sangue.
De Números Anônimos, 1994
[A CIDADE ATRAVESSA O DIA]
A cidade atravessa o dia
engatilhada.
Anônimo, mata ao acaso
e escapa, acossado
atirando para o alto
no alvo do sol certeiro.
Antes da pena d'água
o mar aberto se debate
inumerável, perdido
diante de palmeiras selvagens
temperado em heróica
e lírica consonância
com a lagoa inesperada
na boca seca do túnel
com o céu
reagindo no reflexo
tentando subir se salvar
mas resvala na pedra
isolado.
A noite afinal dispara.
Vou no vácuo, no intervalo
harmônico
entre dor e nada
acuado em corpo único
vivendo do próprio fígado.
De Números Anônimos, 1994
CORPO
Acrobata enredado
em clausura de pele
sem nenhuma ruptura
para onde me leva
sua estrutura?
Doce máquina
com engrenagem de músculos
suspiro e rangido
o espaço devora
seu movimento
(braços e pernas
sem explosão)
Engenho de febre
sono e lembrança
que arma
e desarma minha morte
em armadura de treva.
De Palavra, 1963
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