Déborah de Paula Souza
Caros amigos,
A jornalista paulistana Déborah de Paula Souza talvez seja uma
poeta bissexta, para usar a classificação de Manuel Bandeira. Embora garanta que
nunca parou de escrever, ela publicou um livro no início dos anos 80 e agora,
mais de duas décadas depois, acaba de aprontar o segundo. O primeiro, Moça
Mousse Musselina, de 1982, saiu pelas Edições Pindaíba, selo identificado
com o que se chamou, nos anos 70 e 80, de poesia marginal.
Os escritos de Déborah, no entanto, não tinham nada da suposta “marginalidade”
da editora. Ao ler o Moça Mousse, o poeta José Paulo Paes destacou a
leveza com que a jovem poeta trabalhava com itens do dia-a-dia: “Agrada-me em
você uma certa delicadeza de toque, uma certa finura no descobrir patético do
cotidiano que, mais do que certas audácias, parecem ser o seu natural — e, por
natural, melhor — de poeta”.
Para o crítico Fábio Lucas, leveza é também a palavra-chave nos textos
inaugurais de Déborah. “Gosto do seu poder de síntese, da sensualidade
contida/revelada. Você pisa o território lírico com a leveza de uma gata. Mas o
texto reflete tempestades invisíveis, atitude mental que a aproxima de Clarice
Lispector”, escreve ele.
Agora, após depois de sua extensa temporada de silêncio, Déborah tem pronto
O Livro Vermelho, um trabalho que reúne poemas inéditos — e, claro, nada tem
a ver com a obra homônima do camarada Mao. O leitor deste boletim encontra aqui
a oportunidade de ler em primeira mão alguns dos poemas dessa nova coletânea. No
final, incluí também "Enxoval", um texto da primeira obra.
A autora, naturalmente, está mais madura. Mas, ao que parece, não perdeu o gosto
pela descoberta de pequenas coisas do cotidiano, sempre encantada com "os ovos
de santa clara / a gema das coisas todas". Ela sabe que a poesia, assim como o
amor e tantos outros objetos de risco, deixa o poeta como "criança pequena
brincando com navalhas".
Abraço,
Carlos Machado
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DORA FERREIRA DA SILVA
A poesia brasileira perdeu na semana passada uma de suas vozes mais expressivas,
a poeta e tradutora
Dora Ferreira da Silva.
Autora de uma obra rigorosa e multilaureada (ganhou três vezes o
prêmio
Jabuti), Dora escreveu livros como Andanças, Talhamar, Poemas
da Estrangeira e Hídrias. Grande tradutora, transpôs para o português
nomes como Rilke, Saint-John Perse e Hölderlin. Sua versão das Elegias de
Duíno, de Rilke ("Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos / me
ouviria"), constitui uma referência na tradução de poesia no Brasil. Dora
Ferreira da Silva nasceu em Conchas (SP) e faleceu aos 86 anos.
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Brincando com navalhas
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Déborah de Paula Souza |
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A LÂMINA
Tonta com o vinho
das tuas palavras
tantra sob a lâmina
das tuas ciladas
morta de dar risadas
brilho como falsa jóia
— e tão cálida —
zonza entre tuas mãos e tuas facas
santa com perfume de dálias
sem sutiã, sem rumo, sem sandálias
criança pequena brincando com navalhas
A GRAÇA
Diante da poesia de tudo
é que eu enfim me ajoelho
e aperto os olhos
pra focar seu lume
Estas palavras nunca foram minhas
— a poesia é dona de si mesma
e distribui suas senhas faiscantes
Estou a seus pés
e a mãe do mundo me abençoa
ela tem suas vaidades, brinca comigo
me afaga e me atordoa
Vive em seu altar
em luxo de montanhas e placentas
repleta de diamantes
São dela todas as coisas
as palavras, as nascentes, as faíscas
este instante
COM O DIABO NO CORPO
De forma que entra
sem cerimônia
no corpo da mulher
bufando como animal
com chifres quase alados
De modo que toca o intocável
e bole e dança
até que ela lhe prepare
com alegria e gritos
perfumes, crianças
e toda sorte de escândalos
De maneira que agarra
seus cabelos
e respira como um bicho
recendendo a sândalo
e molha seu corpo
com saliva e cuidados
É assim que penetra o diabo
fundo como punhal ou lembranças
e só dentro da mulher ele alcança
a paz e seus contrários
Então é homem, filho, calmaria
santo profeta de velhas mesquitas
irmão do que é belo e são
senhor das coisas benditas
AUGUSTO
Com ele inventei Portugal
compreendi azeites de oliva
jogo de cartas, conhaque e anarquia
Devo a ele esta facilidade
de me encantar com os homens
mas também o medo esquisito
de um dia vê-los morrer
meio loucos meio meninos
confundindo o nome dos filhos
na aflição de quem se pergunta
onde termina a vida
onde começa Deus
A FOME
O ovo de santa clara
a gema das coisas todas
o sol os amarelos
as gérberas na sala
Os dilúvios são deus
os naufrágios muitos
(morrer é simples no fim)
Está passando depressa
o tempo secará em mim
o sonho a dor a promessa
o sexo e suas miragens
Mas antes de ficar velha
eu vou comer a paisagem
De O Livro Vermelho (inédito)
ENXOVAL
jamais conheci esse homem
que com certeza me dará
a parte de sua vida — a mais doce
um disco de debussy
gomos de mexerica
beijos na boca seu sexo sua lívida
expressão de amor
jamais conheci esse homem
com quem terei um filho um cachorro um aparelho de chá
a louca intimidade das dores de garganta
(e por jamais tê-lo conhecido
é que me preparo
no ritual patético das moças
separo um vidrilho
um corpo debruado em cio
a maternidade branca das louças)
De Moça Mousse Musselina (1982)
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