Castro Alves
Caros,
"Vulgarmente melodramático na desgraça, simples e gracioso na ventura" — assim
Manuel Bandeira caracteriza o poeta romântico baiano Castro Alves. Para
Bandeira, "o que constituía o genuíno clima poético de Castro Alves era o
entusiasmo da mocidade apaixonada pelas grandes causas da liberdade e da
justiça". Naturalmente, o autor de "Vou-me embora pra Pasárgada" refere-se aí ao
Castro Alves condoreiro, o vate arrebatado de "O Navio Negreiro" e de "Vozes
d'África", além de outros hinos de elevada eletricidade social. Esse é o poeta
que conhecemos desde a escola fundamental.
O próprio Bandeira chama a atenção para o outro
lado de Castro Alves, "o simples e gracioso". Ele destaca que, nos temas líricos
amorosos, o baiano se exprimia "quase sempre sem ênfase e às vezes com exemplar
simplicidade". Como ilustração do que diz, Bandeira cita dois poemas:
"Adormecida", do livro Espumas Flutuantes (1870) e "Crepúsculo
Sertanejo", de A Cachoeira de Paulo Afonso (1876, póstumo). Transcrevo ao
lado esses dois textos.
De fato, é encantadora a sensualidade que o bardo empresta ao quadro da moça
adormecida na rede. Tirando-se talvez a última quadra, que põe no poema o
carimbo do romantismo, seria possível dar a esse texto idade menor que seus 136
anos. Em "Crepúsculo Sertanejo", o ritmo característico dos versos de onze
sílabas métricas (que são, na verdade, dois de cinco sílabas) e o incrível
talento do poeta parecem descrever a paisagem com pinceladas naturalistas. Sobre
o "Crepúsculo Sertanejo", escreve Alfredo Bosi, em sua História Concisa da
Literatura Brasileira: "Versos que nenhum dos parnasianos por certo iria
superar na captação plástico-musical do ambiente".
Transcrevo por fim a "Canção do Violeiro", um poema que mostra outra faceta de
Castro Alves, o letrista de música popular. Qualquer um que leia esses versos
logo percebe que eles estão pedindo uma melodia. Aliás, mostrei certa vez esse
poema a um amigo meu, compositor (que não o conhecia), e ele apareceu no dia
seguinte com uma canção, prontinha. Detalhe: depois descobrimos que o poema já
fora musicado e gravado — mais de uma vez. Nessa moda de viola, Castro Alves
fala até no canto triste do acauã (ou cauã), que depois seria popularizado na
canção de Zé Dantas, cantada pelo rei do baião, Luiz Gonzaga.
•
Antonio Frederico de Castro Alves nasceu em Muritiba, BA, em 1847, e
faleceu em Salvador, aos 24 anos. Participante das grandes lutas sociais de seu
tempo, destacadamente da causa antiescravagista, Castro Alves tornou-se um dos
poetas mais populares do país. Tanto que a data de seu nascimento, 14 de março,
foi escolhida como dia nacional da poesia.
O local de nascimento de Castro Alves tem sido constante objeto de erro.
Afirma-se que o poeta "nasceu na vila de Curralinho, depois
cidade de Castro Alves". Incorreto. Castro Alves não nasceu em Castro Alves.
Infelizmente, até autores respeitáveis repetem esse erro. É o caso,
por exemplo, do professor Alfredo Bosi na História Concisa, já citada.
Não é difícil supor a origem desse equívoco. No prefácio das
Poesias Completas de Castro Alves, Manuel Bandeira escreve o seguinte:
"Nasceu Antônio de Castro Alves (1847-1871) na fazenda Cabaceiras, a sete
léguas de Curralinho, hoje cidade de Castro Alves" (o grifo é meu). As
poucas léguas, embora corretas, fazem a confusão. Nascer perto de
algum lugar não significa nascer
nesse lugar.
Consulte-se o que diz a
Academia Brasileira de Letras, da qual o poeta é um dos patronos: "Castro
Alves (Antônio Frederico de C. A.), poeta, nasceu em Muritiba, BA, em 14
de março de 1847 (...)". Eis a informação correta.
É simples: a fazenda Cabaceiras ficava à margem do rio Paraguaçu, em Muritiba,
então comarca de Cachoeira. A casa da fazenda, restaurada, existe ainda hoje e
nela está instalado o Parque Histórico Castro Alves. Desde a Constituição de
1988, o distrito de Cabaceiras desmembrou-se de Muritiba e tornou-se
independente com o nome de Cabaceiras do Paraguaçu. Portanto, conforme o ponto
de vista histórico, dá para dizer que o poeta nasceu em Cachoeira, ou em
Muritiba (que é o consagrado), ou em Cabaceiras. Mas Castro Alves não nasceu em
Castro Alves.
•
A honestidade me manda adicionar este último parágrafo. Não pensem que minha
defesa da verdade histórica, aí em cima, é absolutamente desinteressada. Passei
a infância lendo e recitando poemas de Castro Alves como o poeta local.
Sou de Muritiba, BA. Se isso me torna suspeito, também me dá, ao mesmo tempo, a
"autoridade" testemunhal, não-livresca, de quem já esteve várias vezes na
fazenda Cabaceiras, onde nasceu o poeta.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
|
Crepúsculo sertanejo
|
Castro Alves |
|
ADORMECIDA
Ses longs cheveux
épars la couvrent tout entière
La croix de son collier repose dans sa main,
—
Comme pour témoigner qu'elle a fait sa prière.
Et qu'elle va la faire en s'éveillant demain.
A. de Musset
Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.
'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos
— beijá-la.
Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...
Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!
E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...
Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor!
— tu és a virgem
das campinas!
"Virgem!
— tu és a flor
da minha vida!..."
De Espumas Flutuantes (1870)
CREPÚSCULO SERTANEJO
A tarde morria! Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas;
Na esguia atalaia das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas.
A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos,
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.
A tarde morria! Mas funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro...
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro.
Sussurro profundo! Marulho gigante!
Talvez um — silêncio!... Talvez uma —
orquestra...
Da folha, do cálix, das asas, do inseto...
Do átomo — à estrela... do verme — à
[ floresta!...
As garças metiam o bico vermelho
Por baixo das asas, — da brisa ao açoite —;
E a terra na vaga de azul do infinito
Cobria a cabeça co'as penas da noite!
Somente por vezes, dos jungles das bordas
Dos golfos enormes, daquela paragem,
Erguia a cabeça surpreso, inquieto,
Coberto de limos — um touro selvagem.
Então as marrecas, em torno boiando,
O vôo encurvavam medrosas, à toa...
E o tímido bando pedindo outras praias
Passava gritando por sobre a canoa!...
De A Cachoeira de Paulo Afonso (1876)
CANÇÃO DO VIOLEIRO
Passa, ó vento das campinas,
Leva a canção do tropeiro.
Meu coração 'stá deserto,
'Stá deserto o mundo inteiro.
Quem viu a minha senhora
Dona do meu coração?
Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.
Ela foi-se ao pôr da tarde
Como as gaivotas do rio.
Como os orvalhos que descem
Da noite num beijo frio,
O cauã canta bem triste,
Mais triste é meu coração.
Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.
E eu disse: a senhora volta
Com as flores da sapucaia.
Veio o tempo, trouxe as flores,
Foi o tempo, a flor desmaia.
Colhereira, que além voas,
Onde está meu coração?
Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.
Não quero mais esta vida,
Não quero mais esta terra.
Vou procurá-la bem longe,
Lá para as bandas da serra.
Ai! triste que eu sou escravo!
Que vale ter coração?
Chora, chora na viola,
Violeiro do sertão.
De Os Escravos (1883)
|