Número 160 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 26 de abril de 2006

«Entre mim e o que em mim / É o quem eu me suponho / Corre um rio sem fim.» (Fernando Pessoa)
 


Delmo Montenegro


Caros amigos,


O poeta pernambucano Delmo Montenegro (Recife, 1974) escolheu na poesia o caminho do difícil e até da não-comunicação. Experimentalista radical, ele está sempre em busca da palavra nova, daquilo que aparentemente nunca foi dito. Ou nunca foi dito dessa ou daquela maneira.

Agitador cultural, Delmo Montenegro é um dos organizadores da antologia poética Invenção Recife, da qual já saíram três volumes. O poeta tem textos publicados em revistas e jornais. Em trabalhos-solo, sua estréia deu-se em 2003, com o livro Les Joueurs de Cartes Os Jogadores de Cartas. Depois, em 2005, lançou o livro Ciao Cadáver.

A poesia de Delmo Montenegro é difícil, até de transcrever. Em seu primeiro trabalho, Les Joueurs de Cartes, um livro em formato de mesa, ele reúne textos largos e longos com fartas variações tipográficas — algo à la Mallarmé em Um Lance de Dados.

Agora, em  Ciao Cadáver, os textos, ao contrário, são severamente contidos. No entanto, abundam as fragmentações, as montagens de palavras em compostos exóticos: “bossa-tripálio-lounge”, “solilóquio-câncer”, “bufonaria-viola-necrose”. Citações eruditas, palavras ou frases em latim e grego (ou inglês, francês, espanhol, alemão) misturam-se à transcrição de partituras musicais, representação gráfica de acordes no braço do violão, rabiscos e jogos visuais. Como escreve a poeta também pernambucana Micheliny Verunschk, "Ciao Cadáver é uma partitura de ossos, nervos e entranhas expostos".

Dito isto, vale lembrar que estou transcrevendo ao lado algumas das páginas menos ousadas do livro de Delmo Montenegro. Sem partituras, sem grafismos. Creio que elas representam bem os textos mais sintáticos, ou menos "pós-além", do poeta.


Abraço,

Carlos Machado

 

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DEDAL DE AREIA

Saiu novo livro do poeta baiano Antonio Brasileiro. Chama-se Dedal de Areia e foi publicado pela Editora Garamond, do Rio.

Radicado em Feira de Santana-BA, Brasileiro é um dos criadores e principais articuladores do movimento Hera, que publica desde 1972 a revista Hera
— a publicação poética de maior longevidade no Brasil.

Ao contrário de outros livros do poeta, Dedal de Areia está disponível em livrarias online (exemplo: Submarino). No livro, você encontra versos como estes, do poema "Enredo":


Há enredos com final feliz
para agradar aos timoratos.

Mas há o insólito que é tudo isto
que se chama vida e seus recados.


Mas o ponto mais alto do Dedal de Areia é "O Cavaleiro", um poema longo de 27 partes. Trata-se de uma revisitação do Dom Quixote, que agora enfrenta "moinhos de aço na metrópole de aço". Esse novo Cavaleiro da Triste Figura é, sem medo de errar, um dos melhores poemas que li nos últimos anos.

 

 

Partitura de ossos

Delmo Montenegro

 



BURGHESIA:PHOTONOM/
         
CORTISONA: PORTA-RETRATO

mondrian-exquis
     apartamento: rizoma

apartamento:
     sofá-placebo:

fluxo-pólen

(nenhum rosto)
lácteo-ósseo-prenome
: gravata-inferno

omoplata




PÓS-GOYA: DIGIT ADVERSA

tensão
sob
a pele: nenúfares
(corpo lejano
traço gris)
sol-miosótis
: tatuagem

olho
: ônfalo

céu-horror
: parakleitos

sob a hora-pólen:

(
o peso
do morto
em
si
)




EXERCÍCIOS LINEARES

                             Para Rodrigo de Souza Leão

leo-
virgo
transhabito
: o
pênsil
ictus

sol-
lua
: jogo
têxtil

trans
carne

anti-céu


trans
cepto
da
palavra

duro odos

noosfera

pós-
signo

sol-
lua-
jogo

o zodíaco situs

ovo
lumina

carnação




VOZ DO VENTO

scripta


ex cripta

 

porque você não me escreve
ismália
verbum-vocat: farfalha
(isto não-ser
: pedúnculo

genitália-réstia

quase
despele) tudo transita
além e pós-além
: olho-frugal

(núpcia)

porque você não me escreve
ismália
cantochão-músculo: lírica
(ocluso canto
: molusco

fresta fálica: língua

quase
despele) tudo transita
além e pós-além

: verbum-vocat




ex

cripta

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Delmo Montenegro
In Ciao Cadáver
Landy Editora, São Paulo, 2005