Número 162 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 10 de maio de 2006

«A canção, a simples canção, é uma luz dentro da noite.» (Mario Quintana)
 


Plínio de Aguiar


Caros amigos,


Baiano de Salvador, Plínio de Aguiar (1939-) é antropólogo, filósofo e especialista em ensino superior. Ex-professor universitário, publicou poemas em plaquetas, antologias, coletâneas e suplementos literários. Mas sua estréia em livro-solo deu-se apenas no ano passado, com o título Lira Rústica (2005).

Atento ao mundo que o cerca, Plínio de Aguiar combina em seus textos referências diretas ou discretas a poetas (e.e. cummings, Wallace Stevens, Pessoa, João Cabral, Lorca) com pensadores (Lyotard) e artistas pop (Jimi Hendrix). São também abundantes as citações de lugares por onde traçou seu percurso existencial, principalmente na Bahia e no México, onde viveu durante quatro anos. Essa mescla de referências aparece, por exemplo, no poema "Crepuscular", transcrito ao lado. "Lemos Auden Pound Meirelles / e invejamos bêbados de tempo / aquele que observa o relógio".

Para o contista e crítico Valdomiro Santana, "Plínio de Aguiar é da família de T.S. Eliot e Paulo Mendes Campos, para só citar esses, que são poetas para poetas". Quem lê o poema "Réquiem Shopping Time" fica obrigado a concordar com essa observação. Os versos “No andar de cima, em chamas / mulheres aves grávidas / discutem sobre a morte” lembram o refrão de "A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock", de T.S. Eliot: "No saguão as mulheres vêm e vão / A falar de Miguel Ângelo"). No poema de Aguiar, o saguão é o andar de cima de um shopping.

Outra faceta da poesia de Plínio de Aguiar está no lirismo evocativo. Exemplos carregados de emoção são dados, por exemplo, nos poemas "Útero" e "Trem de Volta". No primeiro, o poeta lembra a mãe distante. "Ainda te sinto, antiga dependência / Velho quarto com hálito de coisas". São versos marcantes. Vale destacar a polissemia da palavra "dependência", que aí vale tanto para o quarto como para a ligação com a figura materna — aliás, já explicitada no título.

Em "Trem de Volta" o poeta revisita as brincadeiras de infância, em férias, num tempo que se perde no "diesel esfumaçado do passado". "Quanto barandão, João, / jogamos", pergunta o poema. Barandão (nem o Aurélio nem o Houaiss registram) é um brinquedo que consiste num fio com uma pedra ou algo similar, mais pesado, na ponta. Segundo encontrei no site Jangada Brasil, barandão é possivelmente a corruptela de um nome português, Brandão. Originalmente, era um instrumento com várias pontas usado para caçar papagaios. No final do poema, o eu lírico faz uma ingênua concessão: "eras melhor no arremesso, / primo João" É como admitir um fato trivial, sem importância. Mas como dói.


Abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

 

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poesia.net em números

Nesta edição, o poesia.net segue para 1522 leitores diretos. Mas a comunidade virtual do boletim deve ser bem mais ampla. Exemplo: descobri na semana passada que somente um professor de Salvador reenvia o poesia.net a dois grupos de professores e amigos que somam mais de 180 pessoas.

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Em abril último, o site do poesia.net (Ave, Palavra / Alguma Poesia:
www.algumapoesia.com.br) registrou a marca de 420 visitantes diários, que leram 1437 páginas. Em relação a setembro de 2004 (veja o quadro abaixo), o número de visitas cresceu 70 vezes.
 

Mês

Média Diária

Visitas Páginas

Set-2004

6

65

Ago-2005

168

662

Abr-2006

420

1.437

No diesel do passado

Plínio de Aguiar

 



CREPUSCULAR

Buscamos ser mais que a praia
inutilmente.
Lemos Auden Pound Meirelles
e invejamos bêbados de tempo
aquele que observa o relógio.

Nada mais forte que a praia
do Porto da Barra
nada. Nem mesmo o maiô preto
que se desmancharia
e te deixaria

nua no meu desejo, violado de areia
e comentários de amigos
comigo sentados, paralisados.

Buscamos ser mais que a praia,
mas estávamos numa teia, vermelha,
bombardeados de sol.



ÚTERO

                                  Para Mãe

Ainda te sinto, antiga dependência
Velho quarto com hálito de coisas
Flores murchas pisadas passadas
Quando os amigos flutuavam
Em minha trajetória.

Ainda te sinto, cubículo abandonado
Em plena viagem marítima pela tarde
Onde o sol banhava-se de sono.
Teu corpo era um só segredo
Revelado numa noite
Descontroladíssima.


Despertei com o ruído (quantas vezes?)
De teus sonhos. Tu me abrigavas
Teu teto me iluminava e teus pelos
Encerravam-se à sombra de possíveis
Chuvas, e outras coisas do tempo
Litoral.

Tuas mãos agitavam-se na limpeza
Contínua das paredes riscadas de projetos
E já antecipavas a viagem do mistério
Decifrado. Ainda te sinto, antigo quarto.
A porta, entreaberta, range ao sopro
Do idioma mal pronunciado.

                         (México, DF, 1977)

 

REQUIEM SHOPPING TIME

A cidade sai do coldre
a cidade subindo escada
a cidade infiltrando-se em camas.

No andar de cima, em chamas
mulheres aves grávidas
discutem sobre a morte.

Nas ruas lixeiros limpam
nossas consciências.

Acabou tudo, penso
o poema também, penso
acabou:
operários e otários amanhecendo.

 

TREM DE VOLTA

              A D. Odete, minha madrinha, in memoriam

Quanto barandão, João,
jogamos? Um dia, navegando
infância, pilotando sonhos
caminhamos pisando escuridão
rumo à fazenda do teu avô.
Quantas provas de fogo, primo,
quanto mato perdido, canavial,
quanta cerca, mergulhos e fuga,
"Camurça" — Olha o boi!

Chapéu de palha. Faquinha na
bainha, badogue, caga-sebo, sabiá,
cobra-cipó, rabo-de-galo precoce
na venda, manhã furtiva, facão.
Araçá-mirim e Creuza.
Rua Rui Barbosa, alambique,
bagaço, cachaça, quantas provas
de fogo, fazenda São João.

O bondinho esperava o navio
e a maresia. Caranguejos,
o mangue. Massapê deslizava,
o riso, queda, cana-caiana, delicadeza
e, epa! Vaca vaca seu Benzinho,
leite puro Joãozinho,
curral, bosta, capim-santo,
roupa cáqui de Seu Caetano,
rio, leite, peixe, encanto,
verde luz, besouro, flor,
casamento da raposa, magna
mula, Manoel, marimbondo, mel.

Quanto barandão, João,
jogamos? Minha madrinha
aguardava nossa vinda
da madrugadinha do curral
e devolvia-nos o dia
com cuscuz de tapioca,
pão de milho esquentado,
seu sorriso seguro. Um dia,
o gato Saci veio a mim.
Espantei-me com seus olhos
verdes e descobri que um gato
é um gato. Recolhemos nossas
coisas, caímos no mato, planos
e planos, tomamos banho
e rimos
esquecidos.

Regresso, como se estivéssemos
no trem. Volta às aulas, ao diesel
esfumaçado do passado.
Castanhas de caju na calçada
desolada, eras melhor no arremesso,
primo João.
 

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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Plínio de Aguiar
In Lira Rústica
Booklink, Rio de Janeiro, 2005