Número 163 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 17 de maio de 2006

«Hoje estou bêbado de universo» (Giuseppe Ungaretti)
 


Silvana Guimarães


Caros amigos,


Nesta semana, o poesia.net traz para vocês uma novidade. Trata-se de uma poeta da internet. Mineira de Belo Horizonte, Silvana Guimarães não tem livro publicado. Seus poemas aparecem em vários sites da web. Como se auto-apresenta, ela foi pianista, socióloga, especialista em transporte público. Agora escreve, "por pura vingança". Além disso, vem preparando seu primeiro livro para lançar em 2007. Se não chover —  acrescenta ela, ironicamente.

Além de poeta, Silvana Guimarães divulga literatura. Ela é editora, ou co-editora, de sites como a revista Germina Literatura e Escritoras Suicidas, ambos dedicados à divulgação do que se produz atualmente em poesia, prosa, tradução, crítica e muito mais.

Marcada por um tom ao mesmo tempo triste e irônico, a poesia de Silvana Guimarães parece influenciada pela produção poética brasileira dos anos 70 e 80. Fatos e desacertos do cotidiano — das observações pessoais às notícias de jornal — comparecem ao texto, subtraindo-o de toda a solenidade possível.

Estão presentes na poesia de Silvana Guimarães os enredos pessoais (como em "Modo de Amar", "A Eleita", "Açafrão") e o que pulsa lá fora. Às vezes tudo isso vem misturado. Em "Ecos", os barulhos de uma conturbada noite urbana invadem o quarto de alguém insone que ouve tudo e até observa a lua no asfalto molhado.

Mas a poesia de Silvana também se aproxima de outras vozes poéticas.
O poema "Açafrão", no meu ponto de vista, é da mesma família de idéias que "Imagem", a pungente página do carioca Dante Milano (1899-1991): "Uma coisa branca / Eis o meu desejo. / Uma coisa branca / De carne, de luz, / Talvez uma pedra / Talvez uma testa, / Uma coisa branca / Doce e profunda, / Nesta noite funda, / Fria e sem Deus. (...)" Diferentemente, o poema de Silvana quer, talvez, uma coisa da cor do açafrão, amarela como um susto. Curioso é que a poeta não conhecia Dante Milano. Eu é que chamei a atenção dela para o poeta carioca.

Abraço,

Carlos Machado

 

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POESIA NA INTERNET

O trabalho da poeta Silvana Guimarães como editora de revistas na web me leva a discorrer mais um pouco sobre a publicação de poesia na internet.

Todos sabemos que a poesia é, como se diz, a prima pobre da literatura. É muito mais difícil publicar um livro de poemas de alta qualidade que um romance ou livro de contos simplesmente médio ou ruim.

Em vista disso, a oportunidade de mostrar o trabalho na internet parece mais importante para os poetas que para os ficcionistas. No início, há meia dúzia de anos, os novos poetas se reuniam em torno de revistas publicadas papel. Surgiram várias delas, algumas de excelente nível.

Mas o papel, embora tenha vantagens, atinge poucos. Os poetas começaram a se reunir em sites e, depois, aproveitaram as facilidades ainda maiores dos blogs. Hoje boa parte do que se produz de interessante aparece nas revistas literárias online e nos blogs. Alguns desses sítios poéticos estão listados na seção Links de nosso site. Confira.




 

 

Lua no asfalto molhado

Silvana Guimarães

 



MODO DE AMAR

não fales das tempestades
que colhes por debaixo dos
meus frágeis vestidos escuros
(não contes como sou feita de escuros)
nem da fúria com que os arrancas de mim

não fales do meu anel
de como envolve teu dedo
(não contes que dedo)
nem o que eu faço com ele
pra te ouvir chorar



MISCIGENAÇÃO

Um bisavô
tinha parte
com o vento.
Durou pouco,
não chegou
aos quarenta.
A bisavó
era de pés
tão fincados
na terra,
que viveu cem.
Um outro
juntou ouro,
fama, poder.
A outra,
por pouco,
quase põe
tudo a perder.
Uma avó,
resignada,
fez filhos
e rezas.
A outra,
decidida,
filhos e
revolução.
Um avô era
poeta.
O outro era
padeiro.
O que no fim
dá no mesmo:
tudo pão.



CAIXA DE FERRAMENTAS

dúzias de pregos soltos  4 alfinetes de fralda
                                        [ o desmazelo
1 rolo de fita isolante que nem teve serventia
6 retratos 3x4 (fora o do relicário de prata que
                                        [ não é meu)

desarrumadas lembranças   1 carta de amor
3 de baralho: 1 rei de pau   1 dama de quatro
1 ás de ouro (puro): erro de cartomante

1 chave de fenda   1 calcinha de renda
1 clave de lua pena de passarinho
asa de borboleta raiozinho de sol

caixinhas de música  conchinhas
a coleção de pedras  1 colar de pérolas
aquele salto alto que nunca foi lá

2 espelhos   7 chaves (e nenhuma abre a algema)
1 faca covarde 1 pulso (esquerdo) enferrujado
a tesoura sem ponta tormenta de velhos papéis

missal de madrepérola   são jorge no santinho
assassinando o dragão com 1 canivete suíço
9 segredos sufocados nos laços da fita amarela

1 soluço   a última ilusão
todos os beijos que eu dei todas as bugigangas
                                               [ que juntei
todos os parafusos que perdi

(quase esquecido  de lado  escondido entre rimas
                                               [ rasgadas
e a flor no mal-me-quer   1 martelo torto e
                                               [ sem cabo
de tanto bater na saudade)


 

 

A ELEITA

Às terças e quintas,
Richard Gere.
Às segundas e quartas,
Brad Pitt.
Às sextas e domingos,
Johnny Depp.
Todo sábado,
Antonio Banderas.

Sempre pela madrugada.

Nos restos dos dias
ela vagueia pela casa
arrastando
                a sua obesidade mórbida
                a sua solidão mórbida
                a sua lucidez mórbida



AÇAFRÃO

Uma coisa amarela,
é isso o que eu quero.

Quem sabe a lua nova,
quem sabe um dia manso.

Talvez um galho de sol
sobre um rio cansado.

Uma coisa amarela,
eu quero, porque quero.

Talvez, cheiro de outono,
quem sabe, um pedaço

de vento, folha, areia,
coisa que vem de dentro.

Qualquer coisa, eu quero.
Da cor que regenera.

Qualquer tom de amarelo,
que não seja sorriso.

Pode ser até um beijo,
alguma coisa acesa.

Fogo, faca, afago
de tirar meu fôlego.

Quero, porque preciso,
alguma coisa qualquer.

Quem sabe uma palavra,
ainda que fosse suja.

Quem sabe só uma flor
chegando com urgência.

Uma coisa amarela,
talvez. Como um susto.



ECOS

sirene de ambulância atraves
            s
                        ando a madrugada
desejo rondando o quarto
iluminando pernas pêlos segredos

o cheiro agre do escuro
o gosto agre do escuro-escuro

uma mulher sorrindo
(sorrindo como quem chove)

os passos da velha no andar de cima
o choro do bebê no prédio ao lado
o pneu cantado na esquina

esta lua vadia farta
                                       linda
estatelada no asfalto molhado

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Silvana Guimarães
Poemas inéditos em livro.
Alguns foram publicados em sites literários.