Silvana Guimarães
Caros amigos,
Nesta semana, o poesia.net traz para vocês uma novidade. Trata-se de uma
poeta da internet. Mineira de Belo Horizonte, Silvana Guimarães não tem livro
publicado. Seus poemas aparecem em vários sites da web. Como se auto-apresenta,
ela foi pianista, socióloga, especialista em transporte público. Agora escreve,
"por pura vingança". Além disso, vem preparando seu primeiro livro para lançar
em 2007. Se não chover — acrescenta ela, ironicamente.
Além de poeta, Silvana Guimarães divulga literatura. Ela é editora, ou
co-editora, de sites como a revista
Germina
Literatura e
Escritoras Suicidas, ambos dedicados à divulgação do que se produz
atualmente em poesia, prosa, tradução, crítica e muito mais.
Marcada por um tom ao mesmo tempo triste e irônico, a poesia de Silvana
Guimarães parece influenciada pela produção poética brasileira dos anos 70 e 80.
Fatos e desacertos do cotidiano — das observações pessoais às notícias de jornal
— comparecem ao texto, subtraindo-o de toda a solenidade possível.
Estão presentes na poesia de Silvana Guimarães os enredos pessoais (como em
"Modo de Amar", "A Eleita", "Açafrão") e o que pulsa lá fora. Às vezes tudo isso
vem misturado. Em "Ecos", os barulhos de uma conturbada noite urbana invadem o
quarto de alguém insone que ouve tudo e até observa a lua no asfalto molhado.
Mas a poesia de Silvana também se aproxima de outras vozes poéticas.
O poema "Açafrão", no meu ponto de vista, é da mesma família de idéias que
"Imagem", a pungente página do carioca
Dante Milano
(1899-1991): "Uma coisa branca / Eis o meu desejo. / Uma coisa branca / De
carne, de luz, / Talvez uma pedra / Talvez uma testa, / Uma coisa branca / Doce
e profunda, / Nesta noite funda, / Fria e sem Deus. (...)" Diferentemente, o
poema de Silvana quer, talvez, uma coisa da cor do açafrão, amarela como um
susto. Curioso é que a poeta não conhecia Dante Milano. Eu é que chamei a
atenção dela para o poeta carioca.
Abraço,
Carlos Machado
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POESIA
NA INTERNET
O trabalho da poeta Silvana Guimarães como editora de revistas na web me leva a
discorrer mais um pouco sobre a publicação de poesia na internet.
Todos sabemos que a poesia é, como se diz, a prima pobre da literatura. É muito
mais difícil publicar um livro de poemas de alta qualidade que um romance ou
livro de contos simplesmente médio ou ruim.
Em vista disso, a oportunidade de mostrar o trabalho na internet parece mais
importante para os poetas que para os ficcionistas. No início, há meia dúzia de
anos, os novos poetas se reuniam em torno de revistas publicadas papel. Surgiram
várias delas, algumas de excelente nível.
Mas o papel, embora tenha vantagens, atinge poucos. Os poetas começaram a se
reunir em sites e, depois, aproveitaram as facilidades ainda maiores dos blogs.
Hoje boa parte do que se produz de interessante aparece nas revistas literárias
online e nos blogs. Alguns desses sítios poéticos estão listados
na seção Links de nosso site. Confira.
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Lua no asfalto molhado
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Silvana Guimarães |
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MODO DE AMAR
não fales das tempestades
que colhes por debaixo dos
meus frágeis vestidos escuros
(não contes como sou feita de escuros)
nem da fúria com que os arrancas de mim
não fales do meu anel
de como envolve teu dedo
(não contes que dedo)
nem o que eu faço com ele
pra te ouvir chorar
MISCIGENAÇÃO
Um bisavô
tinha parte
com o vento.
Durou pouco,
não chegou
aos quarenta.
A bisavó
era de pés
tão fincados
na terra,
que viveu cem.
Um outro
juntou ouro,
fama, poder.
A outra,
por pouco,
quase põe
tudo a perder.
Uma avó,
resignada,
fez filhos
e rezas.
A outra,
decidida,
filhos e
revolução.
Um avô era
poeta.
O outro era
padeiro.
O que no fim
dá no mesmo:
tudo pão.
CAIXA DE FERRAMENTAS
dúzias de pregos soltos 4 alfinetes de fralda
[ o desmazelo
1 rolo de fita isolante que nem teve serventia
6 retratos 3x4 (fora o do relicário de prata que
[ não é meu)
desarrumadas lembranças 1 carta de amor
3 de baralho: 1 rei de pau 1 dama de quatro
1 ás de ouro (puro): erro de cartomante
1 chave de fenda 1 calcinha de renda
1 clave de lua pena de passarinho
asa de borboleta raiozinho de sol
caixinhas de música conchinhas
a coleção de pedras 1 colar de pérolas
aquele salto alto que nunca foi lá
2 espelhos 7 chaves (e nenhuma abre a algema)
1 faca covarde 1 pulso (esquerdo) enferrujado
a tesoura sem ponta tormenta de velhos papéis
missal de madrepérola são jorge no santinho
assassinando o dragão com 1 canivete suíço
9 segredos sufocados nos laços da fita amarela
1 soluço a última ilusão
todos os beijos que eu dei todas as bugigangas
[ que juntei
todos os parafusos que perdi
(quase esquecido de lado escondido entre rimas
[ rasgadas
e a flor no mal-me-quer 1 martelo torto e
[ sem cabo
de tanto bater na saudade)
A ELEITA
Às terças e quintas,
Richard Gere.
Às segundas e quartas,
Brad Pitt.
Às sextas e domingos,
Johnny Depp.
Todo sábado,
Antonio Banderas.
Sempre pela madrugada.
Nos restos dos dias
ela vagueia pela casa
arrastando
a sua obesidade mórbida
a sua solidão mórbida
a sua lucidez mórbida
AÇAFRÃO
Uma coisa amarela,
é isso o que eu quero.
Quem sabe a lua nova,
quem sabe um dia manso.
Talvez um galho de sol
sobre um rio cansado.
Uma coisa amarela,
eu quero, porque quero.
Talvez, cheiro de outono,
quem sabe, um pedaço
de vento, folha, areia,
coisa que vem de dentro.
Qualquer coisa, eu quero.
Da cor que regenera.
Qualquer tom de amarelo,
que não seja sorriso.
Pode ser até um beijo,
alguma coisa acesa.
Fogo, faca, afago
de tirar meu fôlego.
Quero, porque preciso,
alguma coisa qualquer.
Quem sabe uma palavra,
ainda que fosse suja.
Quem sabe só uma flor
chegando com urgência.
Uma coisa amarela,
talvez. Como um susto.
ECOS
sirene de ambulância atraves
s
ando a madrugada
desejo rondando o quarto
iluminando pernas pêlos segredos
o cheiro agre do escuro
o gosto agre do escuro-escuro
uma mulher sorrindo
(sorrindo como quem chove)
os passos da velha no andar de cima
o choro do bebê no prédio ao lado
o pneu cantado na esquina
esta lua vadia farta
linda
estatelada no asfalto molhado
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