Número 167 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 14 de junho de 2006 

«Uma antigüidade ainda mais antiga / sobe de nosso peito em forma de soluço.» (Antonio Brasileiro)
 


Ronaldo Monte


Caros amigos,

Professor de psicologia e psicanalista por profissão e escritor por devoção, o poeta e contista Ronaldo Monte de Almeida é um cidadão de amplos nordestes. Nasceu em Maceió, Alagoas, em 1947. Aos onze anos, como diz, "foi aprender a viver no Recife". Desde 1978, mora em João Pessoa, tornando-se um paraibano "por opção e por tempo de serviço".

Ronaldo Monte estreou na poesia em 1983, com o livro Pelo Canto dos Olhos. Dezessete anos depois, publicou Tecelagem Noturna, volume que também inclui a coletânea de estréia. Entre e um e outro livro de poesia, deu a público livros de contos e crônicas (o autor mantém uma coluna semanal no jornal Correio da Paraíba). Em 2004, publicou também o livro World Trade Center, um poema longo escrito em parceria com o poeta e compositor paraibano Pedro Osmar. Este mês, junho de 2006, saiu novo título de ficção de Ronaldo Monte: o romance Memória do Fogo (Editora Objetiva).

A poesia de Ronaldo Monte é, eminentemente, uma tecelagem lírica. Nela se encontram morte e vida imbricadas puxando os fios da vida ("Tecelagem Noturna"). Sabedor de que as coisas não têm a nitidez proposta nos contos de fadas, o poeta se prepara para exercícios inglórios: "Aprende a ver sem esforço / o que a névoa quer te mostrar" ("Serenando"). O que será essa revelação escondida no meio da névoa? Ora, o poeta é homem de perguntas, não de respostas. É por isso que ele diz, no poema "Giordano Bruno", como quem fala a todos e a si mesmo: " Fica-te assim / impura substância / mescla de espelhos / de sombra / de enigma". "Sombra" é talvez uma das palavras preferidas do poeta. Melancolicamente, ele constata em "Lições da Tarde": "Com a tarde nova / aprendo que tenho sombra".

Em "Falésia", o poeta se lança num jogo geográfico-sensual no qual a língua do mar "lambe de alto a baixo as longas costas".  O poema "Sem Roca nem Fuso" parte de um velho ditado popular e segue, como cantador de improviso, ao sabor das rimas que aparecem. No final, ele conclui, entre jocoso e sério, que um dia as rimas se acabam e que as coisas, antes tidas como certas, não são exatamente assim...

Mesmo quando despoja o verso de música, Ronaldo Monte ainda permanece no diapasão lírico. O poema "Lugares Comuns" é um exemplo disso. É apenas um rol de lugares que são símbolos de massacres e das brutais injustiças do cotidiano brasileiro. Lugares-comuns, sinais de um "mundo onde o diabo campeia". Carregado de um mal-estar sufocante, esse poema cala fundo em nós porque essa lista de horrores já existe em nossas mentes.


Um abraço, e até a próxima.


Carlos Machado




                        •o•



ASCENSO FERREIRA

Recebi expressiva quantidade de e-mails a propósito do boletim anterior,
dedicado ao poeta Ascenso Ferreira. Boa parte das mensagens era de pessoas que tiveram a oportunidade de ler e cantar na escola poemas de Ascenso — especialmente o "Trem de Alagoas", um texto que é música, nasceu para a música. Fico feliz em saber que, mesmo com tudo contra, um poeta como Ascenso Ferreira, com seus textos entranhados de brasilidade popular, ainda emociona leitores e ouvintes.

Entre as mensagens sobre Ascenso Ferreira, uma me chamou a atenção em especial. Veio de um leitor residente em Tomar, Portugal (segundo vi no mapa, uma localidade perto de Fátima). Escreve ele: "Foi com fascínio que descobri Ascenso Ferreira. E, além do prazer
daquele ritmo bem tropical, encontrei uma preciosidade: o poema "Filosofia". Isto por se tratar de um texto que desde criança ouço ao meu pai (e que voltei a ouvir mais recentemente desde que a minha filha nasceu e foi crescendo felizmente muito perto dos avós). Não fazia ideia da origem, mas não suspeitava que fosse um poema. Tem algumas variações ("hora de trabalhar, barriga para o ar"), mas é claramente este texto. Ouvido desde há mais de trinta anos em Portugal."

O remetente do e-mail é Nuno Garcia Lopes, poeta, autor de ficção infantil e coordenador do grupo de poesia e teatro O Contador de Histórias. Clique aqui para visitar o site do grupo.


                        •o•



 

Espelhos e enigmas

Ronaldo Monte

 



TECELAGEM NOTURNA

De tua vida por um fio
a morte tece seus panos.

Dia-a-dia, zig-zag,
cresce no chão o novelo
que a sinistra tecelã
virá de noite roubar.

Pé-ante-pé, plec-plec
(a morte usa chinelos),
leva teus fios vividos
pra de noite, tlec-tlec,
alimentar seu tear,

mesclando teu tempo inútil
com o enfado do teu trabalho
num só tecido inconsútil
do teu último agasalho.



Névoa



SERENANDO

Deixa cair a noite,
cair sereno
o olhar sem fome
de seda e âmbar.
Aprende a ver sem esforço
o que a névoa quer te mostrar.

Deixa ficar no escuro
o que não queira
virar lembrança.
Deixa a memória
fazer escolhas.
Deixa o tempo brincar de esconder.

Deixa minar a prata,
arcar os ombros,
riscar as rugas,
dançar os nervos.
Testemunhas das carícias do tempo no
                                       [ teu corpo.

Deixa de presente a madrugada
aos novos feixes de luz e voz
que aprenderam contigo a caminhar.

Fica nesta noite que começa
em ondulações de luz e sombra
curiosas de te conhecer.



LUGARES COMUNS

Carandiru
Candelária
Brasília
Caruaru
Eldorado dos Carajás

Favela Naval
Vigário Geral
Cidade de Deus

Mundo sem Deus
Onde o diabo campeia.



GIORDANO BRUNO

Não procures de quem és
vestígio
ou quem te faz
de efeito remoto

Pois nenhum corpo
quer ter como
vestes
as que desnudam
ombros e traseiros

Fica-te assim
impura substância
mescla de espelhos
de sombra
de enigma.



LIÇÕES DA TARDE

Com a tarde nova
aprendo que tenho sombra

Com a tarde alta
aprendo a cair em silêncio

Com o fim da tarde
aprendo a ir embora

Com a tarde morta
aprendo a lição do nada.


Falésia



FALÉSIA

Língua do mar
que lambe de alto a baixo as longas costas

Onda do mar
que come a carne viva das encostas

Barreira e mar
Falo e poesia.



SEM ROCA NEM FUSO

cada roca tem seu fuso
cada terra tem seu uso
cada porca um parafuso
cada claro o seu confuso
cada certo um obtuso
cada festa seu intruso
até que um dia as rimas se acabam
a métrica perde sua função
e as coisas deixam de ser tão certas
como até então deixavam transparecer.

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Foto Mano de Carvalho

•  Ronaldo Monte de Almeida
    Tecelagem Noturna
   
UFPB/Editora Universitária, João Pessoa, 2000