Número 172 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 19 de julho de 2006 

«Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho» (Murilo Mendes) *
 


Eunice Arruda


Caros,


Nascida em Santa Rita do Passa Quatro (SP), em 1939, Eunice de Carvalho Arruda é autora de doze livros de poesia. Estreou em 1960, com o volume É Tempo de Noite. Três anos depois, publicou Chão Batido e, a partir daí, vem mantendo apreciável regularidade poética. Seus trabalhos mais recentes são À Beira, de 1999, e Há Estações, de 2003.

Pós-graduada em semiótica, Eunice participou de numerosas antologias, no Brasil e no exterior, coordenou projetos de divulgação de poesia, deu palestras e organizou oficinas literárias.

Em versos breves de poemas quase sempre curtos, Eunice traz sempre um tom de desencanto em sua observação do mundo e dos mistérios da poesia. Mas esse desencanto é marcado por uma atitude de quem enfrenta cada palmo do chão em que precisa pisar. É uma poesia de quem se quer vivo e vívido: "Nunca morrer/ enquanto viver" (Propósito). Ou, então, de quem não desiste diante dos descaminhos: "Edifiquei minha / casa sobre a / areia // Todo dia recomeço" (Erro).

Em sua poesia, Eunice Arruda não mente, nem para si mesma nem para o leitor. Esse traço a poeta parece cultivar desde os primeiros passos. Observe-se, por exemplo, o poema "Deus e o Domingo", de 1963. Cedo, a escritora deve ter descoberto que não há soluções milagrosas para as nossas dores. Ela sabe que há, sim, pequenas felicidades e encantamentos —  que, em seu ponto de vista, são "horas de trégua". Mas esses momentos só ocorrem  "quando se afiam / as facas" (Observando).

Talvez seja exatamente por causa dessa aguda consciência da realidade que a poeta Eunice Arruda sonha com um poema "livre da gramática e do som das palavras". Um poema tão livre  "que traga em si a decisão / de ser escrito ou não". Drummond também escreveu que o poema ideal seria aquele que se faz sem poeta. Como isso é apenas um sonho, continuamos a precisar dos poetas: Drummonds, Eunices etc.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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FLAP EM DOSE DUPLA

A FLAP — evento alternativo à FLIP, de Parati — realiza-se pela segunda vez este ano. Em 2005, foi somente em São Paulo. Agora, a FLAP vem em dose dupla: no Rio e em São Paulo. Os debates, abertos ao público, vão reunir escritores, jornalistas, críticos, professores, cineastas e educadores. Segundo os organizadores, jovens ligados ao Projeto Identidade, "o intuito da FLAP é evitar certa acomodação de opiniões nas mesas de debates, quando todos parecem concordar com todos (e as discordâncias acabam relegadas ao plano da fofoca)". Bom sinal.

Eis o resumo:

Rio de Janeiro:
dias 22 e 23 de julho
UniverCidade (Unidade Ipanema)
Av. Epitácio Pessoa, 1664.

São Paulo:
dias 29 e 30 de julho
Espaço dos Satyros I
Pça. Roosevelt, 214, Centro

 





 

 










 

Quando se afiam as facas

Eunice Arruda

 



PROPÓSITO

Viver pouco mas
viver muito
Ser todo o pensamento
Toda a esperança
Toda a alegria
ou angústia — mas ser

Nunca morrer
enquanto viver

 

OUTRA DÚVIDA


Não sei se é
amor

ou

minha vida que pede
socorro
 

               De Invenções do Desespero (1973)
 


ERRO

Edifiquei minha
casa sobre a
areia

Todo dia recomeço

               De As Pessoas, As Palavras (1976)

 

OBSERVANDO

sim

as horas de trégua

Quando se afiam
as facas



UM DIA

um dia eu
morrerei
de sol, de
vida acumulada
na convulsão
das ruas

um dia eu
morrerei e
não
podia:

há poemas
escorregando de meus dedos
e um vinho não
provado

               De Os Momentos (1981)



DEUS E O DOMINGO

Eu ia ser feliz
domingo
naquele tempo bastava pouco
Não sabia que no
domingo
é fácil chover
e muito difícil viver
Ah, eu ia ser feliz
Mas
domingo Deus descansa
e a gente sofre mais


               De O Chão Batido (1963)
 


ENGANO

afinal
construímos prédios
casas jardins rosas
desabrocharam
trêmulas, afinal fomos
submissos às ocupações do dia
                às estações do ano
                à rotação da terra

Pensávamos ser esta a nossa pátria



RISCO

Um poema livre
da gramática, do som
das palavras
livre
de traços

Um poema irmão
de outros poemas
que bebem a correnteza
e brilham
pedras ao sol

Um poema
sem o gosto
de minha boca
livre da marca
de dentes em seu dorso
Um poema nascido
nas esquinas nos muros
com palavras pobres
com palavras podres
e
que de tão livre

traga em si a decisão
de ser escrito ou não

               De Risco (1998)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Foto de Juan Esteves

Eunice Arruda
• "Deus e o Domingo"
   In O Chão Batido
   São Paulo, 1963
• "Propósito", "Outra Dúvida"
   In Invenções do Desespero
   Edição da autora, São Paulo, 1973
• "Erro"
   In As Pessoas, As Palavras
   Editora Letras e Artes, São Paulo, 1976
• "Observando", "Um Dia"
   In Os Momentos
   Nobel/Sec. Est. da Cultura, São Paulo, 1981
• "Engano", "Risco"
   In Risco
   Nankin Editorial, São Paulo, 1998
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* Murilo Mendes, "Reflexão n. 1", Poemas, 1930