Número 175 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 9 de agosto de 2006

«Nada roubaste hoje, amigo, aos deuses imortais?» (Charles Picker) *
 


Cristina Garcia Lopes


Caros amigos,


Nascida em Leopoldina (MG), Cristina Garcia Lopes passou a infância em Viçosa e reside desde 1980 em Juiz de Fora. Nutricionista de profissão, é também professora universitária nessa área. Cristina tem poemas publicados em jornais e revistas e trouxe à luz em 2004 seu primeiro livro, O Continente e Outros Poemas.

Nesse livro de estréia de Cristina Garcia Lopes podem-se identificar duas linhas de ação poética. De um lado, a poeta desenvolve um discurso social-religioso, no qual se busca a redenção por meio da partilha. Conforme observa o ensaísta Fabrício Marques, essa idéia de partilha está presente na própria estrutura do livro de Cristina.

Nos poemas ao lado, no entanto, preferi destacar textos que revelam a outra linha de ação. Neles, a poeta assume um diapasão mais pessoal e trata de temas mais íntimos, como o amor. "Mas nem o ardor suaviza / a letra de carvão / já impressa", escreve ela em "O Verão".  Ou então: "sofisticada maneira de se partir o silêncio em / dois // talvez seja isso / o que chamem / amor" (de "Intermédio").

Se nesses poemas nota-se uma tentativa de dizer o amor, flagrá-lo em sua essência mais profunda, em "O Xadrez", o mesmo amor se mostra em sua natureza física: "o corpo que se dobra / no ar, ágil / e suntuoso" para celebrar os jogos amorosos.

Na mesma vertente, em poemas como "Absoluta", "O movimento" e "A margem", a poeta parece perseguir a definição de sentimentos ou estados d'alma. É o que se pode depreender de trechos como "essa tempestade / que dorme comigo / que mora em meu ventre / ansioso / dia após dia" ("Absoluta"); ou "A visão do rio / corre em si mesma / quando não se tem rio na memória" (em "A Margem").


Um grande abraço,


Carlos Machado

 

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MALDITOS EM BH

Esta é uma dica para o pessoal de Belo Horizonte. O poeta Claudio Willer vai ministrar o curso "Poetas Malditos: Rebelião, Transgressão e Poesia", no período de 25 a 27 de agosto, no Instituto Moreira Salles, na capital mineira. O curso versa sobre autores como Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, no século XIX, e Antonin Artaud, Allen Ginsberg e William Burroughs, no século XX, além de nomes contemporâneos. O Instituto Moreira Salles fica na Av. Afonso Pena, 737, no centro de BH (www.ims.com.br).

Silêncio partido em dois

Cristina Garcia Lopes

 



O VERÃO

fosse o amor assim,
indolor

veia externa
dias de sol

mas nem o ardor suaviza
a letra de carvão
já impressa

uma fração de vislumbre
a outra, ordinária

o amor,
leveza inútil.



INTERMÉDIO

tarde de chuva
um samba no piano

um samba?
é, são esses acordes complicados
uma pauta inverossímil

a síncope
a descompostura:
sofisticada maneira de se partir o silêncio em dois

talvez seja isso
o que chamam
amor

 

O XADREZ

o corpo que se dobra
no ar, ágil
e suntuoso

branco e preto:
a pele e o cabelo
sobre o cinza invisível
dos ossos

para a destreza
houve convergência
de todas as partes

se fosse assim dividido:
o olhar doído
a mão indefesa

o corpo que se dobra
frágil
aos jogos do amor

 

ABSOLUTA

é essa tempestade
que não vem
que se arma oculta
sobre nós
ano após ano

essa tempestade
que dorme comigo
que mora em meu ventre
ansioso
dia após dia

não quer a tempestade
se precipitar de vez
se desatar
no céu
um laço de ferro
sobre a terra
invertida

é essa tempestade
que não vem

 

O MOVIMENTO

é possível encontrar
uma passagem
entre as águas

mesmo quando é preciso
o silêncio
para iludir os cardumes

na outra margem,
a insolência
de um século voraz

que permanece
após a travessia

 

A MARGEM

A visão do rio
corre em si mesma
quando não se tem rio na memória

quando de outra margem
a visão de fundo é desmedida
para o raso da lembrança

quando não há nome
para a umidade plena
nascida dentro
sem rio que a sustente.

Basta a visão do rio
que corre em si mesmo
sem arrancar memória.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Cristina Garcia Lopes
In O Continente e Outros Poemas
Funalfa Edições, Juiz de Fora, 2004
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* In Manuel Bandeira, Itinerário de Pasárgada