Número 176 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 16 de agosto de 2006 

"O mundo é grande e pequeno." (Carlos Drummond de Andrade) *
 


Amadeu Baptista


Caros,


O poeta português Amadeu Baptista nasceu na cidade do Porto em 1953. Estudou letras e colabora em revistas e jornais de Portugal e de vários outros países. Divulgador de poesia, publicou em em seu país autores espanhóis e hispano-americanos. Fundou e co-dirigiu a publicação Babel Fascículos de Poesia e também participou da organização da revista Orfeu 4. Antologista, organizou a coletânea Poesia Digital 7 Poetas dos Anos 80. Amadeu Baptista também publicou uma antologia de prosa e poesia brasileira chamada Quanta Terra!!!, de 2001.

O poeta estreou em 1982 com o livro As Passagens Secretas. Seus trabalhos mais recentes são O Som do Vermelho, de 2003, e Estrela de Bizâncio, de 2005. Este último é seu primeiro título em prosa. Segundo ele, o texto era, no início, "um poema excessivamente longo" e afinal foi ajustado para uma narrativa.

Segundo análise do poeta e professor português Luís Adriano Carlos, "
Amadeu Baptista, autor de poesia ao mesmo tempo amarga, satírica e erótica, exprime a dilaceração tumultuosa da consciência face à contradição quotidiana de quem habita níveis existenciais não comunicantes. Dividido entre o peso da realidade e o furor do desejo, cultiva desde o primeiro livro um exigente tom de indignação ética, ora pessimista e desesperado, ora sarcástico e cruel (...)".

Com efeito, pode-se perceber na poesia de Amadeu Baptista o traço de um inventivo lirismo que caracteriza a poesia portuguesa contemporânea. "Com um só fósforo ilumino o infinito. / E muitas vezes o infinito é algo / muito próximo, um livro, uma chávena / de chá, o teu rosto escondido / na penumbra (...)".

Sensação idêntica pode-se extrair desse belo "Painel para Rosalía de Castro", texto escrito em homenagem a Rosalía
(1837–1885), poeta galega considerada uma das precursoras do modernismo na Espanha. "Perde-se o caminho de casa, a luz extingue-se, / pergunta-se pelo sangue e o sangue não responde, o sangue / perde-se aos borbotões na vida, não há caminho, não há / regresso (...)". E assim segue, num encadeamento de tirar o fôlego.

O lado mais amargo do poeta aparece em composições como "Situação da Indústria Portuguesa no Início da Década". De saída, esse parece menos o anúncio de um poema que um relatório econômico-financeiro-estatístico redigido por algum burocrata de qualquer governo. No entanto quem fala é um rapaz de 16 anos, um pau-para-toda-obra, explorado numa fábrica, que tem "os olhos corrompidos pelo vinagre da luminosidade".


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado




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NO CORAÇÃO DA PALAVRA

A poeta Vera Lúcia de Oliveira lança na próxima terça-feira, seu livro No Coração da Boca. Dividida entre dois mundos, Vera Lúcia (poesia.net n. 40) é paulista, mas reside na Itália desde 1983, onde ensina literatura portuguesa e brasileira na Università degli Studi di Lecce. Para não perder as raízes, Vera sempre escreve de forma bilíngüe, em português e em italiano. Se compõe num dos idiomas, sempre faz uma versão para o outro. O curioso disso é que ela se tornou uma poeta multipremiada, lá e cá.

A distinção de Vera que mais me chamou a atenção foi obtida este ano no Brasil. Trata-se do Prêmio Literatura Para Todos, do Ministério da Educação. Seu livro vencedor, Entre as Junturas dos Ossos, vai circular numa edição de 300 mil exemplares! Acho que nenhum poeta brasileiro jamais teve publicada uma obra de tal alcance.

O volume No Coração da Boca (que tem o seu gêmeo italiano Nel Cuore della Parola), será lançado na Casa das Rosas, em São Paulo: Av Paulista, 37, às 19 horas. Terça-feira, dia 22/08/2006.

Para fechar, um poema do livro anterior de Vera Lúcia de Oliveira, A Chuva nos Ruídos (Escrituras, 2004):

PÁSSAROS CONVULSOS

ave em carne viva
ave em tumulto
ave no osso
ave no uso
asa gravada
no sangue

ave na pressa
ave em vôo convulso
pronta
pra qualquer
fresta
ave torta
e ávida
em revoada
provisória
 


 

Uma xícara no infinito

Amadeu Baptista

 

 

COM UM SÓ FÓSFORO
ILUMINO O INFINITO


Com um só fósforo ilumino o infinito.
E muitas vezes o infinito é algo
muito próximo, um livro, uma chávena
de chá, o teu rosto escondido
na penumbra, o retrato de alguém desconhecido
que de uma praça, acena,
um fio de tabaco, um monograma
num lenço muito branco.
O infinito o mais das vezes é
não mais do que o que toca o coração,
uma leve poeira pelo ar, um ponto fixo
que a mão ousa tocar, esta chama
que de repente amplia a escuridão
e me torna visível a quem passa
e no clarão acende o seu cigarro.

               Revista aguasfurtadas 4+5 (2003)




PAINEL PARA ROSALÍA DE CASTRO

É um frio tremendo.
A água gela nas torneiras, a solidão
cresce com uma unha, uma sombra
atrai todas as camisas de silêncio, arde, é uma
                                           [ noite
encerrando os perigos da perdição, os ferros
                                           [ agudíssimos
do silêncio.

É um frio tremendo.
Perde-se o caminho de casa, a luz extingue-se,
pergunta-se pelo sangue e o sangue não
                                     [ responde, o sangue
perde-se aos borbotões na vida, não há caminho,
                                               [ não há
regresso, a sereia canta
no denso nevoeiro, mas não há esperança, a
                                              [ tempestade
é o único lugar, o único lençol, a voz velocíssima
entregando-nos sem rendição, entregando-nos.

Como uma agulha fecha-nos os lábios, ata-nos
as mãos, como uma agulha de silêncio, feroz,
                                              [ terrível,
cose-nos
contra as paredes e os olhos saltam, saltam, é um
                                              [ frio tremendo
onde tudo arde,
arde antiquíssimo, flecha no coração, solidão
descendo o braço, descendo devagar,
                                             [ espraiando-se

na terrível superfície do silêncio.

               De Rosalírica - Homenaxe de 27 Poetas Portugueses
               a Rosalía de Castro
(1985)




SITUAÇÃO DA INDÚSTRIA PORTUGUESA NO INÍCIO DA DÉCADA

Às vezes, quando a pressão das entregas
                                         [ aumenta,
ajudo a carregar os camiões,
mas o envenenamento é o fim-de-linha, onde
                                         [ cada tarefa
é como a execução de um castigo. Pagam-me
                                         [ mal,
mal tenho tempo para comer um pão ao meio-dia,
                                         [ sinto
que a força
dos meus dezasseis anos não corresponde ao
                                         [ parco
salário que me devem. De aqui a uns anos, irei
                                         [ cumprir
o serviço militar, perderei a precaridade do
                               [ emprego, ainda ontem
uma das mulheres quase ficou sem um braço no
                               [ sector
velocíssimo
da transformação. Servir a pátria é, começo a
                               [ não ter dúvidas,
sofrer esta amargura endémica, a pobreza a
                               [ alcançar-nos
em pouco mais de um passo, os olhos
                               [ corrompidos
pelo vinagre da luminosidade, a consciência das
                               [ coisas
ilegítima na compreensão da linguagem, eu
                               [ calo-me,
os outros falam por mim. Olho em volta, sinto
inexplicavelmente a natureza fortuita das coisas,
                               [ embrenho-me
aos domingos na multidão triunfante, gasto em
                               [ vinho a humilde
alegria
que as pequenas vitórias me consentem,
                               [tremem-me
as mãos só de pensar que existe amor no mundo,
                               [ algures,
longinquamente,
no infinito da nossa ignorância. Gostava de saber
                               [ o nome
deste usufruto da terra, quais as cumplicidades
que tornam tudo isto possível, em que lugar de
                               [ fogo e de agrura
o rosto corresponderá ao rosto e o silêncio
a esta forma de fome secular. Tudo é assim
liminarmente sujo, carregado de sangue e de
                               [ arestas, e duvido
das proféticas sentenças sobre a vida que me
                               [ oferecem, sem que
as contemple, ao menos um instante. Ao fim da
                               [ noite,
aconchego-me ao sol da praia predilecta do meu
                               [ coração,
tudo me dói,
é um lençol de luz e solidão o que recebo, creio na
                               [ morte
como única solução, maldito quem por minha vez
                               [ alguma vez
pecou
sem que ratificasse a estranha recompensa de ter
                               [ aberto
uma passagem para nenhum lugar.
Agora estou aqui e não posso pensar, uma outra
                               [ carga
chama-me,
obedeço cegamente ao encarregado geral,
                               [ ninguém suspeita
mas tenho dentro de mim uma indústria onde
                               [ ninguém produz
porque não vale a pena.

               Da revista Cadernos do Tâmega, nº 3

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Amadeu Baptista
•  "Com um só fósforo ilumino o infinito"
    In revista aguasfurtadas 4+5
   
Porto, 2003
•  "Painel para Rosalía de Castro"
    In Rosalírica (Homenaxe de 27 Poetas
    Portugueses a Rosalía De Castro)
    Organização: Xosé Lois Garcia
    Ed. do Castro, Sada (Galícia), 1985
•  "Situação da Indústria Portuguesa
    no Início da Década"
    In revista Cadernos do Tâmega, n. 3
    Amarante, 1990
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* Carlos Drummond de Andrade,
  "Caso do Vestido", em A Rosa do Povo, 1945